ele

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No sonho, Kelvin estava em um vasto campo aberto.

Algo acontecia atrás dele, pois conseguia ouvir o estrondo ensurdecedor de canhões. A paisagem estava envolta em uma densa fumaça, e o cheiro intoxicante de pólvora penetrava suas narinas, aumentando seu pânico.

Ele corria. Corria o mais rápido que podia, sentindo o pulmão arder em seu peito, com um desespero crescente a cada passo. Quanto mais corria, mais parecia se distanciar de seu destino, ainda que não soubesse exatamente aonde queria chegar. O horizonte à sua frente permanecia indistinto e nebuloso.

Em dado momento, conseguiu reunir coragem para olhar para trás.

E lá estava ele.

O homem que sempre aparecia em seus pesadelos.

A pele negra reluzia à luz do sol pálido, a barba cheia e os cabelos enrolados moldavam um rosto fechado e determinado. Era alto e imponente, vestindo um uniforme do exército que parecia pertencer a uma era distante. Em suas mãos, uma arma. Kelvin não entendia de armas, mas sabia que aquela, como qualquer outra, tinha o poder de matar. Isso bastava para ele desejar correr ainda mais rápido, embora o homem se movesse com uma velocidade aterrorizante, diminuindo a distância entre eles a cada segundo.

Num momento de descuido, Kelvin tropeçou em uma raiz, rolando descontroladamente três vezes antes de seu corpo finalmente colapsar sobre a grama úmida. O impacto foi brutal, e ele sentiu a terra fria contra sua pele.

O homem que o seguia pareceu satisfeito com a queda. Sua figura sombria se materializou ao lado de Kelvin, imponente contra a luz do sol que agora parecia cinza e sem vida.

Com uma calma cruel, ele apontou a arma para Kelvin, que estava caído no chão. Sem um pingo de misericórdia, o homem apertou o gatilho, e o som do disparo ecoou como um trovão.

O som alto foi a última coisa que Kelvin ouviu antes de acordar no ônibus de viagem, ofegante, suando e trêmulo. Suas mãos estavam geladas e seu coração batia descompassado.

Olhou pela janela, tentando se orientar, e a primeira coisa que viu foi uma placa que dizia "Bem-vindos a Nova Primavera".

Dizem que aquilo que nos pertence já é nosso em algum lugar.

Quando decidiu se mudar com Berenice para uma cidade do interior, sabia que poderia dar muito certo, o que seria ótimo, ou dar muito errado, e então teria que lidar com as consequências. Viver em São Paulo é caro, e pode ser desafiador conseguir sequer uma oportunidade de emprego, ainda mais quando se é artista. Kelvin sabia disso quando entrou para a faculdade de música.

Agora, ali estava ele, mudando-se para o interior para trabalhar com eventos. Sequer sabia o que deveria fazer, mas Berenice garantiu que pagavam bem e o trabalho era tranquilo.

Desempregado, sem perspectivas e com o seguro-desemprego no fim, Kelvin não viu outra alternativa a não ser aceitar mudar-se para Nova Primavera, onde Judas perdeu as botas, para ao menos tentar restabelecer sua vida. Haviam acabado de chegar, e Berenice garantiu que havia conseguido uma carona para eles até onde ficariam hospedados.

— Mas você conhece esse boy de onde, amiga?

— Da fazenda, ué. Ele é filho do dono. — ela sorriu. — Ramiro é dono daquilo tudo e sequer liga para isso.

— Ramiro? O nome do cara é Ramiro?

— Ramiro Neves.

— Que original.

Pontuou, num tom sarcástico. Estava irritado, suando muito com o calor daquele lugar, e sentia o cheiro de fritura vindo da barraquinha da rodoviária. Mudar de vida é mais difícil do que parece, e Kelvin estava exausto.

— Teve outro pesadelo, amigo? — perguntou Bere, que, como ninguém, sabia identificar o humor do amigo.

Ele tinha pesadelos desconexos fazia uns três anos, o tempo em que começou a morar com Bere e acordar gritando à noite. A amiga já havia segurado muito a barra nesses momentos. Por um tempo, quando a vida de Kelvin estava estabilizada, os pesadelos pareceram cessar. Mas agora, com toda aquela mudança de vida e uma ansiedade crescente, voltaram com força total.

Ele tentava esconder isso de Bere, mas ela sabia. Kelvin mudava completamente quando tinha um desses pesadelos, quase como se sua energia fosse completamente tomada por eles. Dormir nem sempre ajudava, às vezes até piorava.

— Sim, tive sim. Mas está tudo bem, não foi tão ruim.

— Você conversou com sua psicóloga antes da viagem, certo?

— Sim. — mentiu. — Conversei sim.

Havia trabalhado de barman três noites seguidas para conseguir completar o valor que precisava para se mudar e, de dia, cantou em alguns clubes. Não tivera sequer tempo de conversar com sua psicóloga, e sabia o quanto isso era ruim. Estava tão sonolento que, se piscasse, acabaria dormindo ali mesmo, com Berenice ao seu lado falando o quanto Antônio La Selva era imponente, e contando alguma fofoca sobre Ramiro não gostar de usar o nome do pai, e por isso usava o da mãe.

Kelvin amava a amiga, mas naquele momento, não tinha certeza disso.

Estavam esperando havia dez minutos, quando uma caminhonete estacionou em frente à rodoviária, num barulho estridente que fez Kelvin xingar.

— É o Ramiro! — anunciou Bere, levantando-se do chão onde estavam sentados (largados).

Kelvin levantou-se lentamente, como se o peso do corpo fosse demais para ele. Trazia suas coisas em duas malas pequenas e uma mochila, e sua vida inteira estava ali. Colocou a mochila nas costas enquanto Bere corria para cumprimentar o amigo que, até agora, Kelvin não havia entendido como ela conhecera exatamente. Quando ela se afastou do tal Ramiro e Kelvin olhou para ele, sentiu toda a energia que havia em si ser sugada.

Era ele.

Kelvin engoliu em seco e piscou várias vezes, como quem tenta entender em qual realidade está presente.

Já havia conversado com sua psicóloga mil vezes sobre isso. Ela garantira que nossa mente só produz pessoas, nos sonhos, se em algum momento da vida cruzamos com elas. Seja na rua, em lugares, onde for. Nossa mente não cria rostos novos, ela guarda as informações que já foram vistas antes.

Mas se isso era mesmo verdade, como reconhecerá aquele homem se nunca antes o viu pessoalmente?

Por um minuto, desejou sair correndo, como fizera em seu último sonho. Mas ele sorriu e acenou para Kelvin, como se nada tivesse acontecido.

Ramiro se aproximou.

— Você deve ser o Kelvin, não é? Berenice falou muito de d'ocê.

Kelvin assentiu, ainda encarando o homem como quem vê um fantasma. Este não pareceu se importar, simplesmente pegou as duas malas de Kelvin e as levou até a caminhonete.

— Amigo, você está bem? — Bere se aproximou quando Ramiro se afastou, caminhando com Kelvin até o veículo logo atrás. Kelvin negou com a cabeça, piscando para aliviar a pressão que sentia.

— Está tudo bem, sim. — mentiu. De novo. — Está tudo bem.

Não estava nada bem e, de repente, se sentiu preso em um de seus pesadelos.

Acontece que desse não teria como acordar.

karma | kelmiroOnde histórias criam vida. Descubra agora