povoado

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povoada
quem falou que eu ando só?
nessa terra, nesse chão de meu Deus
sou uma mas não sou só
— povoada canção de sued nunes.


Há quem diga — ou acredite — que o karma é sempre ruim, mas em defesa dele, nem sempre é. Imagine que você está numa montanha-russa. No início, está cheio de expectativa, achando que foi a melhor escolha entre todas, que a experiência vai ser incrível! De todos os brinquedos do parque, este é, com certeza, o que lhe trará as maiores sensações.

Quando o carrinho da montanha-russa começa a subir, você percebe que a coisa é mais complexa do que parecia no início. Mais complexa e mais profunda. A subida é imensa, e você começa a ver toda a vista dos arredores, uma vista magnífica! A sensação de estar lá no alto, de ser o rei do mundo, é incrível! Parece que a implacável lei "tudo o que sobe tem que descer" não se aplica aqui, e que esta sensação nunca vai terminar.

Mas essa sensação dura pouco.

Logo, você começa a perceber que a coisa estabilizou e que uma grande descida vem por aí. São pequenos toques, pequenos estremecimentos no caminho que fazem com que aquele delírio bom tenha os seus dias contados.

Até que, em determinado momento, do nada, aparece a descida. "Eu nem tinha percebido que tinha subido tanto!", "Havia assim tanto para descer?".

O amor kármico é como uma montanha-russa, e quando se sobe demais, a queda é demorada e lenta. Mas, como tudo na vida, a impermanência do karma é o que o diferencia da vingança ou do acerto de contas. Está mais para um encerramento, uma finalização.

É um ponto final, algo que começou há muito tempo e deixou um rastro de dor por onde passou.

É um ponto final.


Ele sentia frio. Muito frio. Foi a primeira sensação que teve ao recobrar a consciência.

"No inferno faz frio?" Kelvin se perguntou, pois tinha quase certeza que iria para lá no pós-morte.

Com dificuldade, conseguiu erguer a mão direita, tateando as roupas largas que exalavam um cheiro dolorosamente familiar. Estava buscando pelo buraco, pelo impacto do som estrondoso que o atingira quando caiu. Mas não encontrou ferimentos em seu corpo. Estava inteiro.

E vivo.

E usava roupas com o cheiro dele.

A primeira coisa que viu, quando buscou algo que fizesse sentido, foram duas criancinhas com os rostos pintados o encarando ao seu lado. Ambas estavam com roupas sujas de terra e não pareciam se importar com isso, estavam descalças e comendo caju. Kelvin nunca tinha visto um caju.

Ele olhou ao redor e percebeu que não estava no Naitandei. As paredes eram feitas de madeira e palha, e o ambiente exalava um cheiro de terra molhada com madeira queimada, como quando chove e o contato da água com a terra traz um frescor a tudo. Não entrava luz pelas pequenas aberturas no teto, a luz que tinha era de uma fogueira ao centro.

— Vão lá para fora, vão!

Uma voz feminina chamou a atenção das duas crianças, e eles saíram correndo, se distanciando de Kelvin. Ele tentou se sentar, mas seu corpo inteiro doía, e sua cabeça começou a latejar assim que o esforço mínimo, que para ele parecia o máximo que seu corpo suportaria, foi feito.

— Ei, calma... Continue deitado, Kelvin.

Era Iraê. Ele percebeu pois já a tinha visto com Ramiro antes, no bar.

karma | kelmiroOnde histórias criam vida. Descubra agora