bemóis

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eu tava tão acostumada a não te ter aqui
eu não senti a sua falta olha, eu sobrevivi
me diz como é que pode eu me sentir assim

— samba do moço bonito de clara valverde


DUAS NOITES ANTES

Em seu sonho, ele avançava, implacável.

A cada passo, sentia o terreno ceder sob suas botas, mas seu ritmo não diminuía. Sua respiração era controlada, seu foco absoluto. Ele sabia que seu alvo corria, o pânico estampado em seus movimentos descoordenados. Mesmo sem o ver claramente, sabia seu rosto, podia sentir o desespero do homem à sua frente, um desespero que só aumentava a determinação de sua perseguição.

O ruivo olhou para trás, e seus olhos se encontraram. Aquele olhar de terror que ele conhecia tão bem. A pele negra do perseguidor reluzia sob a luz pálida do sol, o uniforme do exército carregava uma aura de autoridade e poder. Em suas mãos, a arma que ele manejava com habilidade letal.

A cada segundo, a distância entre eles diminuía. Ele podia ver o esforço desesperado do alvo, a respiração ofegante, o suor escorrendo. E então, o inevitável aconteceu. O ruivo tropeçou, seu corpo rolando descontroladamente.

O perseguidor se aproximou com passos firmes, satisfeito com a queda. Sua figura imponente se materializou ao lado do alvo, um contraste sombrio contra a luz do sol que parecia perder a vivacidade.

Com uma calma cruel, Ramiro ergueu a arma e apontou para Kelvin.

Não havia misericórdia em seus olhos enquanto apertava o gatilho, o som do disparo ecoando como um trovão no campo desolado.

Ramiro acordou gritando.

De novo.

PRESENTE

— Sim, é ele. Tenho absoluta certeza.

Ramiro estava sentado no chão em frente ao pajé, que defumava algo na enorme oca. O cheiro era familiar, embora ele não conseguisse se lembrar exatamente do que se tratava.

— Como tem tanta certeza?

Perguntou o pajé, com um tom calmo que deixava Ramiro nervoso, como se esperasse que ele falasse mais, embora não soubesse exatamente o que dizer. As conversas com o pajé Jurecê eram sempre assim: Ramiro contava seus sonhos sem sentido, e o pajé o ouvia enquanto o defumava.

— Deve ser porque sonho com aquele rosto desde que me entendo por gente! — a voz de Ramiro saiu mais alta do que o planejado. — Desculpa, é que...

O pajé ergueu a mão, silenciando-o.

— Ramiro, os sonhos são mensagens, segredos do universo sussurrados apenas para você. Mensagens que apenas você possui a chave para decifrar. Se ele está aqui, se tornou real diante de seus olhos, não se esconda.

Desde que começara a ter sonhos recorrentes sempre com o mesmo fim, Ramiro passou a enxergar o rosto que sempre via como um inimigo.

Era sempre o mesmo sonho: ele correndo, sentindo uma angústia enorme e, no fim, o último golpe era sempre dele. Arma de fogo, flecha, espada ou apenas as próprias mãos, era sempre o mesmo fim. Ele acordava com uma sensação horrível, como se conhecesse aquele rosto há muito mais tempo do que vivia na Terra, e ainda assim, nunca o tinha visto antes.

Quando veio ao pajé pela primeira vez e relatou versões diferentes com o mesmo fim, estava à beira da loucura. Então começou um processo que gostava de chamar de limpeza, onde tomava os chás que nem sabia o conteúdo e permitia-se ser defumado. Dessa forma, por um tempo, os sonhos cessaram. Sua ansiedade crescente, no entanto, os fazia retornar, então também começou a usar isso para não sonhar mais.

karma | kelmiroOnde histórias criam vida. Descubra agora