Dia corrido.

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O dia começava sorrateiro, os primeiros raios de sol tomavam os 8 minutos diarios a chegar a terra. Em algum lugar da cidade de São Paulo Verônica Torres passava um café, mais uma madrugada sem conseguir dormir por conta da preocupação com despesas. Todos sabem que o custo de um mísero alugel na cidade era caro, ao ponto que seu salário era magicamente consumido, no instante que caia. E os remédios de seu cachorro, ficavam cada vez mais caros. Cerveja amanteigada Torres, era o mais novo filho de Verônica. O Golden retriver de um ano de idade, havia perdido uma das patas da frente por um câncer de pele, sem remédios o câncer voltaria.

Anita Berlinger lia "crime e castigo" do Fiodor Dostoievski, acompanhada por uma caneca de chá, e sua gatinha Andromeda. Andromeda tinha 7 anos, e sua pelagem era escura quanto a noite. A loira passava suas noites de insônia lendo, estudando ou escrevendo. Essa noite era mais específica, seria transferida a uma nova delegacia. O ato de delegar ja fazia parte da personalidade de Anita, mas mesmo assim, o nervosismo era algo difícil de controlar.

Ambas as mulheres viviam normalmente, sem saber que a algumas horas se veriam cara a cara. 11 anos depois do divórcio, 11 anos que Anita largou Verônica e o Brasil para estudar fora, 11 anos que as duas não amavam ninguém. 11 anos não fizeram Anita esquecer que naquele bendito dia, faziam 12 anos de sua partida.

Torres via a água passar pelos poros do café, o cheiro invadia suas narinas com cautela, seu cachorro seguia dormindo, no vidro levemente embaçado do relógio na parede a hora brilhava as 4:37 da manhã.

Verônica se xingava mentalmente por ter acordado mais uma vez, resolvendo se espreguiçar, memórias a invadiram quando estalou os dedos. Em um lugar gélido do passado, as memórias passavam num flexe.

-Deixa de ser cagona, Verônica!- Anita fala entre risos, as mãos entrelaçadas por Torres começavam a se banhar no suor da morena. A discussão era sobre estalar os dedos, Torres tinha medo de doer e Berlinger tinha mania de estalar o tempo inteiro.

-Não é ser cagona, é ter cautela cara. Se quebrar isso aqui, prejudica você, meu amor.- Verônica responde, tentando engolir o sorriso, oque se tornou impossível com a cena que viu. O corpo de Anita se curvou para trás, a gargalhada escancarou a covinha que a loira trajava de vez enquanto, as vibrações quebravam algo dentro de Verônica, o sorriso da morena saiu como um suspiro.

-Cara de pau! Eu não quebrei os meus, e você sabe que eles trabalham muito bem.- Berlinger falava estalando os dedos de Torres, a morena se deixou levar e no final não doeu nada, era muito mais birra que medo.

O sorriso timido que Torres exibia na época foi o mesmo que exibiu 11 anos depois, com seu cachorro deitando em seus pés descalços. Por dentro o som da gargalhada de uma certa loira, ecoava no vazio de viver sem ela, no vazio que a deixou. Oque antes ecoava em amor, quebrando as barreiras invisíveis impostas pela sociedade, e por si mesma. Hoje ecoavam nos pilares enormes de pedregulhos, dos muros que teve de construir para se proteger, se proteger do seu amor.

Amor. Originalmente o termo latino era usado para o sentimento de afeição, preocupação e desejo por alguém. Sem querer assumir, Torres sentia la no fundo a preocupação, perguntas vagavam em sua cabeça. Será que deu certo? Sua carreira deu certo? A vida sorriu a Anita? Antes que pudesse terminar o raciocínio, Torres colou seu café e seguiu rumo ao quarto com seu cachorro ao seu lado. Berlinger escolheu seu destino e Torres tinha contas a pagar, seja la como estivesse, iria acabar atrasada se pensasse mais. Precisava chegar mais cedo, seu padrinho queria ter uma conversa seria.

Anita pensava em Verônica todos os dias, foi estudar fora pelo sonho de ser delegada, e conseguiu se formar. Mas os sonhos, os desejos, o amor que um dia sentiu, tudo voltava a morena. Anita havia acordado nessa noite, por um sonho.

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