Prólogo

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"Para os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus. (Mateus 5: 10.)"

                    👁️ República de Gilead (EUA) 2022

Um traidor de gênero, porém, fértil.

Nós dormíamos no que antigamente havia sido o ginásio esportivo de alguma escola. Mas não existem mais escolas, apenas internatos. Os filhos estudam em casa. Falo, apenas, os filhos, não os filhos dos comandantes, porque não são deles. Mas também não falo os filhos das Aias, porque é errado falar que são delas, que são nossos.

Para falar a verdade, preferia mil vezes ter sido morto no muro por ser gay, do que continuar com todo esse...caos. Mas eles não quiseram me matar, porque sou fértil, e ômegas férteis são o que eles mais precisam. O pior é que ainda me relaciono com homens, mas não por que eu quero, mas por que eles me obrigam.

Eles escolhem os homens.

Havia sexo antigo naquela quadra. Sentia uma grande solidão e expectativa de alguma coisa sem forma e nem nome. Apenas anseio por qualquer coisa diferente, seja uma fala, um olhar, uma desculpa. Mas era sempre o mesmo tom, a mesma dor, os mesmo olhares, as mesmas falas.

Nós ansiávamos pelo futuro, enquanto tentávamos dormir nas camas pequenas que haviam sido dispostas em fileiras, espaçadas, de modo que não pudéssemos conversar. Qualquer sussurro, qualquer comentário, qualquer conversa, depois da oração, era proibida.

Minha maior dor era acordar e perceber que não era um pesadelo.  É real.

Tínhamos cobertas, lençóis de flanela de algodão, como as de crianças, e cobertores padrão fabricados para o exército, dos antigos que ainda diziam U.S. Mas não podemos citar esse nome. Estados Unidos já passou, agora é Gilead. Uma república, um governo totalitário teocrático. Uma teonomia cristã.

As luzes eram diminuídas, mas não apagadas. Tia Chiyo e Tia Nemuri nos vigiavam. Elas são betas, inférteis e tinham armas de choque, suspensas por tiras de seus cintos de couro. Elas vestem roupas marrons. Porém, não tinham armas, nem mesmo elas mereciam confiança para portar armas de  qualquer tipo.

São mulheres, não possuem direitos.

As armas eram para os Olhos. Eles são guardas, especialmente escolhidos entre os Comandantes. Os guardas não tinham permissão para entrar no centro, exceto quando eram chamados, e não tínhamos permissão para sair, exceto para as caminhadas, duas vezes por dia, duas a duas, dois a dois, ao redor do campo de futebol que agora estava cercado por uma cerca elétrica. Era como uma prisão, só que pior. Pois antigamente, os presos tinham acesso à educação.

Se lermos algo, eles nos punem.

Os Olhos ficavam postados do lado de fora da cerca, de costas para nós. Eram objetos de medo, mas também algo a mais. Se ao menos nos olhassem. Se ao menos pudéssemos falar com eles. Sei que alguma coisa poderia ser usada para troca, acreditávamos, algum negócio acertado, algum intercâmbio feito, ainda tínhamos nossos corpos.

Essa era a nossa fantasia.

Podíamos nos vender, oferecer o que tínhamos, ao menos por um pouco de liberdade. Mas eles nos deduram por dinheiro, como fizeram com uma, há um tempo atrás.

Não sabia o antigo nome dela, e ela também não estava em algum posto para ter seu nome atual. Só sei que ela masturbou um deles numa noite. Ele a enganou, disse que iria ajudá-la. Mas mentiu. Infelizmente, para ela, foram pegos, flagrados por outro Olho e a culpa foi dela. É o que somos obrigados a dizer na confissão.

"Mas de quem foi a culpa?" disse tia Chiyo, levantando um dedo roliço.

"Dela, foi dela, foi dela, foi dela!" entoamos em uníssono. Apontamos para ela. Acusando-a.

O conto do ômega Onde histórias criam vida. Descubra agora