VIII - Ânsia

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ítalo



Eram onze da noite quando seus pais chegaram em casa, ele esperou que sua mãe lhe desse a "bênção" antes de se retirar, e subiu para o quarto antes que seu pai pudesse lhe pedir qualquer coisa. Sem demora, fechou a porta sem passar a chave para não precisar se explicar depois, e jogou-se na cama onde dormia todos os dias, torcendo para que ninguém o incomodasse. A bolsa da escola repousava ao lado do travesseiro cuidadosamente arrumado, assim como os lençóis, alinhados nas laterais do colchão como numa internato militar, ao abri-la, achou o que procurava, uma pequena tela com a pintura de um sorriso com caninos pontudos, a tela que Martin pintou na aula de artes mais cedo.

Algumas coisas aconteceram de um jeito estranho naquele dia, o suficiente para fazê-lo pensar a respeito, e sendo o maior responsável por elas, Ítalo não pôde deixar de se perguntar, o que havia de diferente? Não fazia tanto tempo que ele e Martin estavam estudando juntos, e o tratamento que recebia do colega quase não havia mudado desde a primeira vez, mas naquele dia, alguma coisa mudou dentro dele, ele só não conseguia dizer o quê.

Enquanto encarava o quadro, ele se perguntou o porquê de o colega ter escolhido aquela parte de seu corpo em específico. Ele não tinha nada contra isso, mas o seu sorriso não era algo que a maioria das pessoas notava, quer dizer, ele era sarado por conta da academia e do serviço, não seria esse o foco da maioria das pessoas? Ao menos, as meninas viam isso primeiro, mas Martin não, ele focou em algo completamente diferente do restante, e o cuidado que tivera desenhando aquilo... as pinceladas suaves para não marcar demais o tecido, a mistura precisa de cores para contornar seus lábios, era simplesmente muito detalhado, além disso, a expressão em seu rosto enquanto pintava aquilo...

Ele também não ficava atrás, deu seu sangue desenhando os olhos do colega, olhos que ele achava lindos, diga-se de passagem, mas não via nenhum problema nisso, era errado achar os olhos do colega bonitos? "Aqueles olhos castanho escuro sufocantes...", pensou ele. Ainda assim, porque se deu ao trabalho? Porque isso o estava afetando tanto? Sua cabeça doía com tantas dúvidas.

Ele rolou na cama, voltando-se para a parede e virando a tela para baixo, largando o objeto no colchão. Aquela não era a única coisa que o incomodava, na verdade, não era aquilo que o havia colocado para refletir sobre o assunto. Por mais que dissesse que era completamente normal, quando parava para pensar a respeito, percebia que tinha gostado da pintura de Martin, sequer chegou a questionar qualquer coisa referente a ela, foi só quando percebeu a reação de seus amigos ao mostrar a pintura do colega, que isso se tornou uma questão na cabeça dele.

A princípio os amigos ficaram admirados com o desenho, mas assim que lembraram quem o havia feito, começaram a rir e zombar dele, chegaram até a mandar beijinhos no ar em provocação, enquanto imitavam um casal apaixonado no que deveria ser uma tarde em Paris, eles não eram muito bons em geografia. A princípio ele havia rido junto com eles, mesmo que por alguma razão, ele não houvesse achado engraçado.

— Qual a dele, em? — Perguntou Cadu, um de seus melhores amigos, pouco antes deles saírem da escola.

Martin havia saído mais rápido do que uma bala naquele fim de tarde, a bolsa já pronta, sequer foi desmanchada nas aulas seguintes, e embora tivessem se sentado juntos como sempre, ele não lhe dirigiu uma palavra sequer o restante daquele dia.

— Sei lá. — havia dito ele, com honestidade.

— Achei que vocês fossem amigos agora, ou coisa assim. — O amigo lhe dirigiu um olhar despreocupado, como quem está curioso mas não o bastante para se importar.

Corrente de RetornoOnde histórias criam vida. Descubra agora