Capítulo 2 - E tudo o Natal levou...

74 6 4
                                    

O Michael abriu gentilmente a porta do carro para eu entrar. Era sempre tão cavalheiro para mim que às vezes era levada a questionar-me se eu era gentil o suficiente... 

-Obrigada! - agradeci eu, tentando sorrir embora o  cansaço pesasse toneladas em mim. 

-De nada, Martinha. - respondeu Michael, com um brilho nos olhos capaz de iluminar toda a aldeia nublada. 

Seguimos caminho. O meu "namoramigo" era a pessoa mais cautelosa que conhecera em toda a minha vida, especialmente no que toca a conduzir numa noite em que não existe nada para além de névoa. A velocidade era pouca e constante. As ruas, apesar de não serem muitas, estavam desertas, o que não me surpreendia nem um bocadinho. Talvez nós fossemos os únicos seres humanos desconcertados que saíssemos dos nossos quentes e acolhedores lares na noite de Natal. Começava a achar que todo aquele drama que tinha feito em casa se resumia numa só palavra: desnecessário. Mas não havia nada a fazer se não desculpar-me assim que chegasse a casa. 

"Plim!", uma nova mensagem...

Mãe: Marta, onde estás? Estava a chover a potes quando saíste de casa. Talvez já seja altura de voltares e jantarmos juntos... Beijos.

Eu: Desculpem, vou a caminho. Não se preocupem, estou com o Mic...

PUM! Alguém tinha batido no carro de Michael. O meu telemóvel voou das minhas mãos e sentia que estava prestes a sofrer o mesmo. Durante uma fracção de segundo lembrei-me que não colocara o cinto de segurança por considerar também desnecessário, já que a viagem demorava cerca de cinco minutos. Senti o meu corpo ser sugado pela força do embate para fora do banco. Perfurei o parabrisa apenas com a minha cabeça. Os meus cabelos ruivos esvoaçavam enfeitados pelos cacos de vidro. O meu corpo atravessou também pelo vidro. Conseguia ouvir o Michael, porém parecia-me que estavam a uma milha de distância. Senti-me como que se alguém tivesse chutado o meu corpo para o exterior do carro.  Estava muito vento e chovia imenso. Por instantes, senti-me livre. 

Ia jurar que estava a deixar o meu corpo quando ouvi uma voz. Era um som distante e oco. 

-Marta!! Marta, por favor acorda! Tu estás bem? Por favor, fala comigo!!

Senti estaladas no meu rosto. Alguém estava a abanar o meu corpo como se abana uma bebida antes de abrir. 

-Marta, fala comigo!

Não conseguia pensar. Sentia dores lancinantes em todo o meu corpo. Não sei como consegui arranjar forças , mas lá consegui abrir os olhos. Michael tinha apenas um arranhão na cara, porém sou obrigada a admitir que continuava com um lindo rosto angelical. Tinha ar de preocupado e desesperado. 

-Estou bem. - sussurrei pausadamente, por entre os dentes. 

Cometi uma tentativa falhada de me levantar. Primeiramente porque Michael não me deixara e depois porque o meu próprio corpo não o permitia. 

-Já chamei a ambulância, não tarda muito estão aqui. Aguenta-te, minha princesa. Tu és forte! -afirmou Michael, esperançosamente. 

TINONINONINONI. O alarme da ambulância ecoava nas ruas e na minha cabeça. Os meus pais chegaram no mesmo instante. A aldeia tinha-se reunido e não era por estarem com pena de mim ou por quererem prestar auxílio. Pessoas que vivem em meios pequenos não querem nada para além de uma boa coscuvilhice para comentar com os vizinhos. E era isso que procuravam ali.  

-Aguenta-te filha! - reconheci de imediato aquela voz doce e reconfortante. Era a minha mãe. Consegui perceber que estava lavada em lágrimas. 

-Nós estamos aqui contigo! - desta vez era o meu pai. Agarrou-me na mão e afagou-me os cabelos com a outra mão. 

Percebi que tinha sangue na cabeça quando, sem querer, o meu pai fez uma cara talvez enjoada e retirou a sua mão do meu cabelo. Tentou sorrir para eu não perceber. Tarde demais. 

Transportaram-me para uma maca, com muito pouco cuidado, talvez por já estarem habituados àquele trabalho, julgo eu. Talvez fosse eu que estivesse demasiado ferida e dorida. 

Como vivia numa pequena aldeia e não tínhamos hospital, tivemos que ir até à cidade mais próxima. Sabia que demorávamos cerca de vinte minutos até à cidade, mas naquela maca os segundos pareciam horas e os minutos eram incontáveis. Pareceu-me algo como uma eternidade. 

Apercebi-me que tínhamos chegado, quando a minha mãe tentou sorrir ao segurar-me na mão  e  disse:

-Vamos lá, querida. Tu consegues!

As dores eram horríveis  e ninguém me dizia qual era o meu estado ou o que se tinha passado no carro do Michael. 

Quando abriram as portas traseiras da ambulância senti o vento. Estremeci. Por instantes revivi a minha expulsão do carro. Todo aquele vento contra o meu corpo, a velocidade... A minha cabeça estava a mil... Ouvi um grito e reconheci imediatamente a voz. 

-Marta! Esperem! - gritou o Michael. Aparentemente, Michael tinha seguido a ambulância no próprio carro e viera também. Esforcei-me ao máximo para sorrir mas doía-me cada músculo do meu corpo e não fui capaz. 

Desceram-me na maca para o chão e colocaram-me numa maca própria do hospital, mais uma vez, desajeitadamente. Devo dizer que era uma maca bastante mais confortável. Talvez a mais confortável maca no mundo das macas, se é que tal coisa existe. 

Levaram-me por corredores iluminados, uns estavam vazios outros apinhados de gente.  Sentia os olhos das pessoas pousarem em mim, aterrorizados. Pensei se teria assim tão mau aspeto... Talvez sim...

-Sr. doutor, ela está muito mal! Ajude, por favor! - ouvi a minha mãe dizer. 

-O que aconteceu? - perguntou uma voz desconhecida, do médico, presumo eu. 

Desta vez, respondeu uma voz que me era familiar e inconfundível. Michael falava descuidadamente e estava nervoso. Quando isto acontecia, consegui notar o sotaque americano na sua fala. Tanto que gostava daquele sotaque. Antes, costumava pensar que lhe ficava sexy, mas nunca pensei ouvi-lo numa situação como esta. Desejei estar a sonhar, mas uma pontada de dor na perna que senti naquele instante, puxou-me de volta para a realidade e relembrou-me que nada daquilo era um sonho, ou melhor, um pesadelo... Estremeci. Estava de volta à realidade e apanhei o diálogo do Michael já a meio.

-...e de repente, quando entrei no cruzamento, veio um carro e bateu-nos por trás. Infelizmente, a Marta não tinha o cinto de segurança posto e foi atirada para fora do carro. Disseram que foi dez metros arrastada depois de cair. O condutor que nos bateu fugiu a uma velocidade alucinante e mesmo que tivesse tempo de ver a matrícula, estava muito escuro e nublado. Corri logo para fora do carro ao encontro da Marta. Ela estava inconsciente e permaneceu assim durante alguns minutos. Enquanto isso, liguei para o 112. Depois, abanei-a e tentei acordá-la. Finalmente, ela abriu os olhos. 

Senti-me a piorar. Pensei para mim mesma: "É desta...". Tentei apertar a mão da minha mãe para ela se aperceber do que se estava a passar, mas já não me restava muita força. Sentia o sangue a sair. Sentia-me sem forças. As luzes encandeavam-me mas recusava-me a fechar os olhos. Sentia-me nova, livre. as vozes afastavam-se de mim mas ainda consegui ouvir a minha mãe a gritar por socorro ao médico. Agarraram imediatamente na maca e transportavam-me a alta velocidade. Ouvi gritos longínquos. Sentia-me a chorar por dentro. As dores acalmaram... 

-Aguenta, Marta! - gritou a voz desconhecida, o médico desconhecido - tu consegues. Olha para mim!

Tentei mover os olhos em busca do seu rosto. Não era capaz. Tudo começou a ficar cada vez mais escuro e distante. Era cedo para partir. Tinha tanto a fazer ainda. Tentei lutar contra mim própria. Não durou muito tempo. Desisti. 

Fechei os olhos...

---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Espero que tenham gostado. Não se esqueçam de votar e comentem o que acham que aconteceu e o que acham que vai acontecer a seguir. É muito importante. Dêem dicas e críticas. Até ao próximo capítulo!!






A nossa estradaOnde histórias criam vida. Descubra agora