Capítulo um

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Uma madrugada perfeita para dormir, mas mantenho meus olhos bem abertos, tento decifrar a melancolia que toma todo meu ser.
Na verdade, todas as madrugadas desde janeiro estão sendo assim. Eu vou dormir por volta das dez horas da noite e desperto no meio da madrugada, e nesse horário uma melancolia me invade. Mas por que essa melancolia me invade? Por que me sinto tão cansada? Estou cansada de ficar cansada?

Oh, minhas noites de sono eram tão relaxantes, agora são tortuosas. Para onde foi aquele meu rosto alegre? Aqueles meus olhos ocupados? Se foram, e tenho uma sensação peculiar que nunca mais voltarão. Agora só resta espaço para um rosto pálido, e com olheiras bem profundas. Meus olhos… meus olhos estão perdidos, tentando encontrar algo para fixar.

Olho para o relógio e vejo que ainda são 3 horas e 15 minutos. O dia passa tão rápido, mas a madrugada parece durar uma eternidade.
Tomo um pequeno susto ao perceber que minha gata está me encarando com olhos vidrados. Tento acariciá-la, mas ela foge.

— Ah, sua gata ranzinza. Resmungo.

É madrugada de São João, provavelmente ainda há pessoas festejando por aí ou sentadas em suas calçadas esperando a fogueira se tornar cinzas. Posso sentir minhas pálpebras pesarem, mas não consigo dormir de jeito nenhum. Levanto-me da cama e vou em direção ao banheiro lavar o rosto. Coloco um vestido azul e um casaco por cima, ponho minha bolsa no ombro e decido sair pela rua para espairecer a cabeça. Como havia pensado, há muitas pessoas nas ruas. Logo avisto um grupo de vizinhos sentados ao redor da fogueira. Eles acenam, e vou cumprimentá-los.

— Tudo bem? Pelo visto a conversa está muito boa já que estão acordados até agora.

— Tudo sim, querida. Nossos avós estão contando causos. Senta aqui para ouvir.

— Claro, adoro ouvir histórias.

— Bom, vocês sabem porque aquela estrada que fica perto do ferro-velho é conhecida como “A estrada da Mulher dos Pés de Cajueiro”?

— Não, mas sempre tive curiosidade em saber. 

— *Essa história que vou contar para vocês é uma lenda bem antiga da nossa cidade. Conta-se que nos anos 70, quando a maioria desses bairros ainda não existiam, havia um certo viajante que andava por esse mundo de Meu Deus vendendo produtos naturais. Quando ele visitava nossa cidade, sempre passava por uma estrada que tinha muitos cajueiros. Certa vez, andando pelo lugar com fome, decidiu parar e comer alguns cajus. Sentado debaixo da árvore, avistou uma jovem ruiva, de pele muito branca, que usava um vestido grande cor marfim; ficou encantado com a beleza da jovem e logo puxou assunto com ela. Conversa vai e conversa vem, ele passou a visitar a cidade com mais frequência, até que os dois se apaixonaram. Decidido a ficar com ela, resolveu alugar uma casa em nossa cidade. Ao acertar a conta com o proprietário da casa, o moço, sentindo uma grande felicidade, contou a história de como encontrou o amor de sua vida.

— Então você conheceu ela em uma estrada, debaixo de um cajueiro? Que peculiar. Talvez eu a conheça. Quem são os pais dela?

— Não sei quem são... Ela não gosta de tocar nesses assuntos, diz que tem mágoas do passado.

— Mas, rapaz, você vai se casar com uma mulher que não conhece direito? Isso é perigoso, conheço casos assim que não terminaram bem.

— Não ligo, confio nela. Ela é tão linda e bondosa. Aliás, acho que você a conhece, ela mora naquela estrada dos pés de cajueiros.

— Aquela estrada que fica perto do ferro-velho?

— Sim, essa mesmo.

— Não me diga que… Essa jovem é uma ruiva de cabelos longos, que tem a pele tão branca quanto a neve?

— Essa mesmo.

— Mas, meu Deus, como pode uma desgraça dessas acontecer novamente? Não pode ser... isso é loucura...

— Desculpe, mas não estou entendendo.

— Essa jovem faleceu há mais de dez anos. Desde que ela morreu quase ninguém passa por aquela estrada por medo de ver uma aparição dela. Já escutei muitos relatos de viajantes, que foram perseguidos por ela.

...

— Essa história definitivamente não faz sentido, está mal contada. E o resto? O que aconteceu com o viajante? Ele permaneceu lá?

— No início ele não acreditou, mas logo escutou relatos de outras pessoas e decidiu que o melhor era ir embora.

— Nunca tinha ouvido essa história… que estranha, está cheia de buracos.

— Olha garota, só estou contando o que ele me disse... se você acredita ou não, aí é problema seu.

— Ele disse?

— Sim, o próprio viajante me contou essa história. Fui visitar uns parentes na cidade vizinha e o conheci, um senhor bem alegre e gente boa.

[...]

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Notas: (*) Na minha infância, lembro-me de ter escutado uma lenda sobre um viajante e uma mulher dos pés de cajueiro, como não me recordo da história em detalhes, decidi fazer aqui uma releitura dessa lenda.

Céu Neblinado de DorOnde histórias criam vida. Descubra agora