Capítulo dois

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As histórias do Seu Damião não foram suficientes para dissipar o nevoeiro que está em minha mente. Decido andar mais um pouco. Atravesso duas ou três ruas e, em uma delas encontro Manuel, um bêbado do bairro, que está sentado na calçada de um bar fechado. Ao seu lado, há uma sanfona, e na mão direita segura um litro de bebida. Chora e treme muito, recita aos berros trechos soltos de algum *poema, que, se não me engano, são de Fernando Pessoa.

— … Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas,
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua...

Manuel para um pouco e olha para mim com os olhos perdidos em angústias, me chama para sentar ao seu lado, mas recuso com educação.

— ... Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
‘Oh, Deus…’
(...) E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu...

Dizem que ele era casado e tinha filhos, mas não dava atenção para eles e vivia traindo a esposa. Ele bebia, mas não era entregue a cachaça. Levou um acidente e nunca conseguiu se recuperar. Tentou reconquistar a família, mas não obteve sucesso e hoje vive em bares, tentando enganar a si mesmo achando que essa desgraça vai se dissipar com um copo de álcool.
É, acho que nessa parte, não sou diferente dele, tudo o que faço é para tentar me distrair e afastar essa tristeza. Mas quando coloco a cabeça no travesseiro, essa dor que me mata aos poucos sempre volta.

— ... Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
— completo o trecho com um nó na  garganta.


...


Finalmente consigo sair do meu bairro. Talvez no centro da cidade tenha algo para me apetecer. Coloco as mãos nos bolsos do meu casaco, pois está um frio incomum, o dia está incomum. Olho de soslaio para o relógio e vejo que já é de manhã, mas não parece. Geralmente, na minha região, nesse horário, por mais que seja vespertino, o sol já entra bem luminoso e seus belíssimos raios preenchem todo lugar. Mas hoje não, o dia está tomado por um crepúsculo cinzento, o céu totalmente nublado, com nuvens densas e uma neblina que atrapalha a visão. Ótimo, o dia está combinando com meus sentimentos, um céu neblinado de dor.

Olho novamente para o relógio e acaba de dar sete horas. Ando até chegar na praça e avisto a igreja aberta. Entro e me ajoelho para rezar, mas não demora muito para que me perca em pensamentos. Certa vez, escutei alguém perguntar a seguinte coisa: "Você não tem medo que essa idealização que você quer se tornar impeça você de conquistar/enxergar aquilo que realmente deseja e fará feliz?"
Ele fez essa pergunta para outro, mas guardei para mim e tento respondê-la até hoje.

É claro que a reflexão sobre essa frase pode ser perigosa, dependendo dos desejos e do que realmente trará felicidade ao sujeito. Mas se a pessoa busca uma idealização materialista e afins, essa reflexão pode ser válida. Eu mesma busquei uma vida acadêmica idealizada, sem espaço para certas distrações. Mas o quanto isso me custa ou me custou? Deixei pessoas que amava irem embora, não criei relações duradouras com ninguém, não permiti pessoas com perspectivas e habilidades diferentes se aproximarem de mim. Tentei fazer amizades com pessoas que julgava serem do meu nível, ou seja, pessoas mesquinhas que se acham melhores que os outros. E agora, que faltam poucos degraus para alcançar essa idealização, me encontro desestabilizada por perceber o que me tornei… Uma porção do meu sofrimento faz parte das consequências e frustrações de minha busca por esse ideal. Mas sendo sincera, apesar disso, não me arrependo de todo. Foi bom para mim, que era uma garota inexperiente e emocionada demais, ter me fechado para certas coisas. Penso que estaria em um buraco mais profundo e caído em ciladas se não tivesse me imposto essa vida. O que faltou foi um alinhamento com as virtudes e o discernimento do que era mais importante para mim.

"Não sei, não sei… isso é tão confuso. Aaagh, o que estou pensando? não deveria estar me distraindo das minhas orações.
Oh, Senhor… no momento só quero o que tu quiseres de mim, mas tenho tanto medo de carregar minha cruz e encarar os problemas de fato."

Minha visão sobre a vida torna tudo mais embaraçado. Ao mesmo tempo que me considero uma infeliz por ter nascido, também me sinto sortuda. Creio que esse estado que a alma junto do corpo se encontram é único. Somos tão privilegiados por poder tocar, sentir, ouvir. É belo ser humano, sentir as lágrimas descendo sobre o rosto, indo parar nos ouvidos ou na boca, sentir a barriga doer de tanto rir, experimentar lábios macios ao beijar alguém, receber o calor do outro após um abraço...


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Notas: (*) Poema "Tabacaria", de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa).

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⏰ Última atualização: Jun 25 ⏰

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Céu Neblinado de DorOnde histórias criam vida. Descubra agora