Tela.

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Tem sido um dia chato, vou pegar algo pra beber. Talvez eu abra aquele kit novo de pincéis, e perca o medo de colocar minhas mãos desajeitadas naquela tela alva.

Sabe, já faz um tempo que não crio coragem para pintar. A sensação é de que algo tão puro, limpo, novo, não merece ser atingido, sujo e invadido por pinceladas tortas e tinta de má qualidade.

Até que ponto vai a ingenuidade do ser humano para ter a proeza de apreciar só um monte de cores juntas e misturadas de maneira irregular?

Será que me tornei cético, ou será que finalmente vejo o mundo como ele é?

Tem sido um dia chato, tô cansado de só pensar e planejar, mas nunca levantar essa bunda pra dar continuidade aos meus projetos.

O ardido do gengibre, o amargo do hibisco e o azedo do limão se acentuam nesse chá tenebroso. Como caralhos eu consegui combinar os três piores gostos juntos?

Me pego encarando meu antigo ateliê. Aquele banco é duro demais, aqueles pincéis são pequenos demais, essas pinturas são imperfeitas demais.

Talvez se eu combinasse azul e amarelo, sairia algo bom daqui. Não, Vincent fez isso primeiro.
Quem sabe verde e vermelho? Se bem que, ainda nem estamos na metade do ano, natalino demais.

Rosa, roxo, laranja, marrom, nada fica bom.

Nem me arrisco nos tons chiques pois sei que no fim, é tudo a mesma coisa sem graça.

Meus olhos descansam na tela.

Por que tô fazendo isso mesmo?

Talvez esses quadros surrealistas só sejam tão rasos por conta de quem os pintou, e não por causa das tintas. Do que adianta querer revolucionar se minha mente é tão vaga?

Sentimento. É sobre sentimento.

Ok, o que eu sinto olhando pra essa tela?

Vazio?
Branco?
Espaço?
Nada?

Jesus Cristo, eu sou péssimo nisso.

Uma gota de tinta vermelha acidentalmente respinga quando tento abrir a tampa emperrada.

Ponto?
Descuido?
Sangue?
Dor?
Medo?

A tela me encara, eu a encaro de volta.

Naquela visão simples, eu encontro identificação.

Algo que era novo, incapaz de se defender, e foi manchado por um ser considerado superior. Me vi me identificando com a porra de uma tela respingada.

Nós dois não tivemos escolha quando fomos machucados por aqueles que deveriam cuidar de nós, né, tela?

Agora você nunca mais poderá ser usada pra copiar alguma coisa, já está gasta. inútil.

No fim, eu descubro que a arte não é nem sobre as cores, nem sobre o sentimento.

É sobre semelhança.

Nós, humanos, somos tão egocêntricos, que só encontramos conforto naquilo que nos espelha de alguma forma. Não foi diferente dessa vez.

Minhas pinceladas são tortas, minhas tintas são saturadas, meu banco não tem almofada e meu chá é uma afronta aos ingleses.
Mas, nesta sala, olhando pra essa telinha repleta de linhas, respingos, manchas, e formas
Eu enconto tranquilidade.

Não sou um artista, muito menos um pensador habilidoso. Mas sou um humano, que, como qualquer outro, tem a sede pela representação.

Talvez a arte não seja tão estúpida assim.
Às vezes ela salva vidas, às vezes ela muda rotas, e, às vezes, ela faz um dia chato ser um pouco menos chato.

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⏰ Última atualização: Jun 27 ⏰

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