Sangue e Silêncio: O Fim do Desembargador #1

19 0 0
                                    


Eu podia ouvir tudo, mas não ousava abrir os olhos. Minha mente estava a mil e eu só podia concentrar em contorcer-me para não respirar alto o bastante e ser descoberta, foi a primeira vez depois da morte de meu pai que me senti vulnerável, e a partir daí, os berros de um homem sendo torturado, não me comoveram o bastante para usar o que restava da minha humanidade e ir ajudá-lo.

O melhor a fazer era apreciar o cenário úmido e as teias de aranha que decoravam meu rosto, até que pudesse sair e ignorar totalmente a situação, eu não podia arriscar fazer nada.

Enquanto imaginava o líquido vermelho escorrendo pelo assoalho ainda fresco, a melodia dos anjos tocava em minha mente, talvez, na falha tentativa de me acalmar, mas soava cada vez mais obscuro, pois sabia que no final de todo esse martírio, eu ainda estaria em uma igreja.

Repentinamente, uma voz destaca-se aos ouvidos, como se conhecesse meus pensamentos, pronta pra dar as respostas que não precisava, mas que ainda assim, fariam minha vida mudar; Um tom melódico, sensual e muito perigoso pediu para que dessem uma pausa no "serviço" e os gritos do homem finalmente cessaram.

É a voz de uma mulher.

— Dê-me uma boa razão, para que eu acredite que você não se meteu no que não devia, minta, chore, faça o que quiser, mas certifique-se de me sensibilizar, hoje não estou de bom humor — Disse a voz em uma combinação tão harmônica que quase passava despercebido a frieza acomodada em suas palavras.

—Por favor, não me mate. Eu sou melhor vivo do que morto, eu tenho dinheiro, bens, sou amigo do rei. Eu juro pela vida de meu filho que nem sei quem é a senhora!

—Não acredito em você, mas irei te dar uma chance. Se colaborar, te prometo uma morte mais rápida e indolor, talvez até considere a sua liberdade.

Desde criança venho a este templo, e não sei se foi culpa dos longos discursos acerca do paraíso em que acreditei, mas aquele momento parecia durar a eternidade. Quem era a pessoa que estavam levando para o mundo dos mortos? Melhor, como fui me meter nessa confusão?

—Ah bobinho, e quanto vale a sua influência? Eu não preciso de dinheiro, e tenho todo poder que quero... Achei que seria fácil você entender isso. Vai negar que não ouviu a fama da grande madame Lebrun?

—Sim, madame é inegável que a sua notoriedade percorre as fronteiras das classes mais importantes e sei que a senhora é poderosíssima. —Disse o homem com a voz trêmula.

—Agora, não se vitimize, está metido em tantas imundícies, que não faz ideia de como tem me atrapalhado.

Não acho que a culpa seja toda minha, aliás, uma tempestade horripilante estava assombrando o vilarejo e a igreja parecia um ótimo abrigo. E provavelmente seria, se eu não fosse tão burra ao ponto de me levar pelo atrevimento de descer as escadas bem escondidas da cripta, afinal, a curiosidade matou o gato... ou a gata.

—Te dou minha palavra que não estou a fazer nada de mau. Since-since-sinceramente eu nem sei o motivo de todo sofrimento que estou a passar.

"Estou absolutamente convencido de que os nossos sofrimentos do presente não podem ser comparados com a glória que em nós será revelada".

Romanos 8:18. As muitas aulas de teologia em minha infância, lembraram-me do tão conhecido versículo, eu só não imaginava reconhecê-lo após tantos anos.

—Está mais claro? Estou ficando sem paciência e não tenho tempo para perder com você, confesse o que contou para o administrador, quero saber exatamente o motivo dos burburinhos no palácio.

—E-eu não disse nada, sequer tenho intimidade com ele. Eu apenas trabalho na gestão do reino e guardo os documentos reais, jamais abri minha boca para falar sobre coisas que não me dizem respeito.

—Essas suas mentirinhas vão lhe custar  muito caro.

—Você está me confundindo com outra pessoa senhora, talvez o Jeremiah que é mais novo e trabalha comigo... Sim, isso é a cara do Jeremiah!

—Então está supondo que eu estou com o homem errado? —Gargalhou —Admiro sua coragem de continuar a inventar coisas sob essas condições.

Assustador.

—Acredite em mim, se me libertar esqueço que isso aconteceu,  juro pela minha família!

—Sei que entregou um documento de meu interesse, e com ele, certeza que também foram algumas informações. Ah, como eu sei disso? Simples, a julgar pela quantidade de dinheiro que sua esposa recebeu em casa horas depois.

Eu estava torcendo para que tudo se resolvesse, assim, poderia voltar para a minha vida desagradável em paz, mas do jeito que as coisas iam, precisava me preparar para o pior.

— Esse dinheiro é da herança que minha esposa recebeu, pelos céus. Eu juro! —Disse o homem aos prantos — Tenha misericórdia, sou um pai de família!

Um grunhido de nojo circundou o ambiente.

—Tentei ser compreensiva, mas não quis cooperar. Estou cansada de lidar com vermes que nem você! — Corvo, Furão extraiam a verdade desse fofoqueirinho, e encerrem o serviço rápido, não quero nem um fio de cabelo aqui.

—Sim, madame. — A voz de coro ecoou.

—Tenham cuidado, lá fora o tempo está péssimo e há muitas pessoas se abrigando na igreja. Eu vou indo, preciso me confessar.

O homem começou a suplicar por sua vida e afirmar desesperadamente que não sabia de nada.

— Eu não vou perder mais tempo com esse cara, a madame já fez o que queria. — Disse um dos assassinos acompanhado por um bocejo

— Sim, vamos terminar e ir pra casa. —O outro completou.

Não demorou muito para eu ouvir um som inconfundível que já estava familiarizada: metálico, rápido e letal.

Outrora, ainda criança aprendi uma lição preciosíssima: Em tempos mais distantes, mestres forjadores dos lugares mais distintos de nosso reino, estabeleceram as regras principais da lâmina: concisa, formato variável, tenaz e resistente ao combate.

Voltei à memória o sorriso deslumbrante de meu pai quando recitei pela primeira vez o texto, eu sabia que enquanto me lembrasse do ensinado, haveria uma parte dele viva em mim.

Eu sentia muita falta dele.

De volta à realidade, não havia dúvidas de que se tratava de uma espada bem afiada destinada a decidir o futuro: Vida ou morte.

— Está feito.

Os passos estavam finalmente se afastando, porém, não senti alívio, eu sabia que poderia ir, mas ao colocar minhas mãos na maçaneta, tive medo do que poderia encontrar.

Minha consciência lutava para deixar-me na mesma posição, no entanto, precisava sair daquele lugar o mais rápido possível, afinal de contas, minha vida corria perigo, mas a minha sanidade, ainda mais.

Passei a mão no rosto suado, tirei delicadamente as teias de aranha do meu cabelo, contei até três e empurrei sutilmente o salvador que me livrou de um fim trágico.

Quando meus pés doloridos finalmente alcançaram o chão, me deparei com uma cena que meus olhos jamais serão capazes de esquecer.

A frase "potestas. proditio. bellum. flos." exalava o brilho vermelho da existência de um fim, o fim do desembargador. Diante de mim, o cadáver irreconhecível. O recado da vítima estava escrito com seu próprio sangue.

Será que ele sabia que eu estava lá? O que ele queria dizer?

Ao contemplar a cena fiquei imóvel e senti meus pés fora do corpo, eles simplesmente não me obedeciam! Ótima hora!

Arkalis: O sangue realOnde histórias criam vida. Descubra agora