A Fúria da Vassoura:Entre a calma da manhã e a ira da Velha #6

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Mudei de posição e me sentei ao seu lado. Seus braços me envolveram, e não houve nenhuma outra palavra. Não havia necessidade de palavras; a presença dele era suficiente. Aliás, não tinha como ficar menos esquisito.

Eu torcia para que, ao amanhecer, ele fosse apenas uma alucinação da minha cabeça. Do jeito que ultimamente eu andava, com tanto estresse e cansaço, não seria difícil acreditar que tudo isso fosse fruto da minha imaginação.

Acordei assustada com o padre que abriu a porta bruscamente e levantei rapidamente:

— ARCHIE!!! Por Deus, menino! Eu sabia que você era um mulherengo, mas como ousa desrespeitar a casa de Deus? Isso é inaceitável! Vou ter que ter uma conversa séria com seu pai, e ele vai ouvir tudo o que tenho a dizer!

—E-eu não estava fazendo nada padre! Eu juro, eu estava abraçado por causa da tempestade, aqui ficou muito frio e a Ella pode confirmar tudo.

—É claro que a "Ella" vai confirmar! Quem você quer enganar? Sou seu tutor há anos e te conheço bem garoto, mas dessa eu juro que você não escapa.

Archie? Interessante.

Saí furtivamente antes que eu me tornasse o alvo da lição de moral do padre. Subi as escadas correndo, rindo internamente. A situação em que deixei o Archie parecia irresistivelmente tentadora, e eu adoraria assistir, mas o risco de ser lembrada pelo padre, que poderia arruinar minha reputação, era grande demais.

Depois de sair da imensa igreja, senti a carícia suave da luz do sol e fiquei aliviada. Eu estava viva. Além disso, o frio havia diminuído, e seria tranquilo chegar em casa sem que os ratos arrancassem minhas unhas dos pés.

Mas, como sempre, o alívio não durou muito tempo, o caminho de volta era uma trilha de incertezas, madeira e folhas espalhadas por todo canto. A cada passo que eu dava,meu coração se apertava, temendo chegar em casa e não encontrar minhas irmãs ou ver nosso canto destruído.

Eu estava morando em Muambar, a periferia de SunCastle. A paisagem era enfeitada por grandes casas de madeira de dois andares, construções erguidas com tanto esforço, mas tão próximas umas das outras que os segredos não tinham onde se esconder.

O bairro era animado, cheio de vida, e a comunicação com os vizinhos era vital – fofocas e gentilezas mantinham o lugar em harmonia.

Ou quase.

O distrito desaguava no grande mercado da pechincha, nos arredores do centro. O reino era extenso e seus bairros evidenciavam a diferença de classes, mas o centro da cidade conectava todos os moradores, como um enigma esperando para ser desvendado.

—Mamãe eu quero uma boneca! —Ouvi o berro de uma menina elegante que passeava com a mãe.

E, enquanto a menina gritava por sua boneca, um frio na espinha me percorreu – a linha tênue entre privilégio e ruína era assustadoramente real.

—Vamos, filha, vou comprar sua boneca...Não! Não passe perto dessa gente suja! —Gritou a mulher ao ver um mendigo perto da loja de bonecas.

Enquanto eu caminhava pelo centro, meus olhos capturavam cada detalhe do cenário.

Os inválidos, sempre necessitados, largados nas ruas, imploravam dia e noite por um mísero pedaço de pão. Entre eles, haviam pessoas com histórias variadas. Alguns foram feridos no campo por instrumentos de agricultura, outros eram doentes, aleijados, órfãos, ou deserdados por suas famílias. Também havia forasteiros, que viviam perambulando de reino em reino.

Essas pessoas eram o lembrete constante de quem eu não queria ser, custe o que custar.

Minha cabeça estava nas nuvens, mas ouvi gritos do senhor Beltrame e percebi que estava perto de casa.

— Ei menina! Bom dia senhorita, não acredito que passou a noite fora, ainda mais nessa tempestade, uai!

— Eu fui caçar mas acabei sendo pega de surpresa com a tempestade senhor Beltrame. Fique tranquilo, eu estou acostumada com imprevistos. Mas e como vai a senhora Gizeldi?

— Aquela velha está resmungando como sempre. Inclusive, ela estava cuidando das meninas. Guarde o ouvido, pois você vai escutar muito, viu. Aliás, acho que ela tem um estoque infinito de reclamações!

Fazia pouco tempo que havíamos nos mudado e era muito diferente da antiga casa em que minha família morava. O lugar era pequeno e tinha poucas coisas, estava situado a alguns metros da casa da senhora Gizeldi e do senhor Beltrame.

Eles eram um casal de idosos rabugentos, mas de corações amáveis, que cuidaram de nós desde que chegamos. Provavelmente porque nunca puderam ter filhos e sentiram compaixão das meninas órfãs.

— Então é por isso que você está na rua, né seu malandrinho! — Disse gargalhando com a situação do velho.

— Aqueles que têm juízo, não se deixam disponíveis para serem comidos pela fera não, minha filha. Leve seu escudo!

Sorri e mudei o meu rumo, fui para a casa da senhora Gizeldi.

Ao chegar, fui recepcionada por três adolescentes furiosas, mas suas reclamações se estendiam ao fato de terem estado sozinhas e por não ter comida em casa.

E mais uma vez nenhuma delas se importa comigo.

Desviei o foco e avistei minha casa a alguns metros estranhamente de pé. Agradeci silenciosamente e ignorei as reclamações. De repente, a dona Gizeldi saiu de casa com uma vassoura nas mãos, me batendo e gritando.

— COMO OUSA APARECER AQUI SUA IRRESPONSÁVEL! SANTO DEUS! VOCÊ DEIXOU SUAS IRMÃS SOZINHAS NA TEMPESTADE E FOI CAPAZ DE PERNOITAR FORA DE CASA?!

Eis alguém que se importa.

Cada palavra dela era uma chicotada, e cada movimento da vassoura era uma dança frenética. Eu desviava habilmente, quase como se estivesse em um balé, tentando suavizar a situação com um sorriso, esperando que meu charme pudesse aplacar sua fúria.

— Desculpe, mas não foi...

— NÃO FOI O QUE? AGORA DEU PARA NÃO SER DE FAMÍLIA?

— A senhora não está entendendo que foi um imprevisto. Eu não tive a intenção.

Eu ia correndo devagar para que a vassoura não me atingisse e as pessoas que estavam dando reparos em suas casas começaram a prestar atenção na cena.

Fofoqueiros.

— VOCÊ QUE NÃO ESTÁ ENTENDENDO, EU CONHECI A SUA MÃE, JAMAIS DEIXAREI VOCÊ DESONRAR A SUA FAMÍLIA!

— Eu entendo, mas me deixa explicar.

— VOCÊ NÃO VAI EXPLICAR NADA! VOCÊ ESTÁ HORRÍVEL E SEQUER DEVE FALAR UMA PALAVRA .

A compreensão de dona Gizeldi era tão escassa quanto sua paciência. E, curiosamente, isso nos unia de uma forma inesperada: compartilhávamos a mesma falta de paciência.

— Muito obrigada por cuidar delas, senhora Gizeldi mas eu fui caçar e a tempestade me pegou.

— CAÇAR?! ISSO É LOUCURA. VOCÊ QUER DESONRAR DE VEZ A MEMÓRIA DE SUA MÃE? JÁ BASTA SUAS NOITES DE FARRA NA TABERNA. VOCÊ ESTÁ PERDIDA!

Cansada de ser ignorada e ter que explicar cada ação feita,cada passo como se fosse uma desajuizada, despejei verdades na mulher:

— BASTA! NÃO VÊ COMO ESTOU? NÃO SERIA POSSÍVEL SER UM POUCO COMPREENSIVA E ENXERGAR QUE EU PRECISO CUIDAR DAS MINHAS IRMÃS? — Suspirei ferozmente — EU TIVE QUE CAÇAR PORQUE NÃO TÍNHAMOS O QUE COMER! E, A PROPÓSITO, VOCÊ NÃO TEM NENHUMA AUTORIDADE SOBRE MIM, NÃO PRECISO TE DAR EXPLICAÇÕES!

Eu estava impaciente, e todos os fofoqueiros que me observavam se assustaram, como se eu tivesse acabado de lançar uma bomba em plena praça. Se eu tivesse um troféu para cada vez que alguém ficou espantado com minha falta de paciência, eu seria rica!

A velha olhou para mim com lágrimas nos olhos e entrou para casa sem dizer mais nada.

Fiz besteira. 

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⏰ Última atualização: Nov 20 ⏰

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