Já havia passado quase um mês e nada de novo acontecera, exceto o vencimento do condomínio. Eu não sabia onde, nem como conseguir dinheiro. Já tinha vendido todas as joias da mamãe, exceto o par de brincos de pérolas. Eu me recusava a abrir mão deles, simplesmente porque traziam boas lembranças dela em dias especiais. Pensei em levar sardinhas para vender na feira, mas, mesmo que eu passasse a noite inteira pescando, não conseguiria uma quantidade considerável para quitar a dívida. Além disso, eu não deveria ficar fora de casa com a assistente social rondando o prédio. Em menos de oito dias, ela nos visitou três vezes, sempre acompanhada de outra mulher que permanecia em silêncio o tempo todo.
A Daluzza apenas sorria e assentia com a cabeça a tudo que ouvia na nossa sala. Portanto, tínhamos que suportar também a presença dela, que certamente era muda ou tinha alguma dificuldade em entender nossa língua.
A água da chuva batia contra nossa janela fechada, fazendo barulho por causa de uma parte do vidro que estava meio solta. Dentro do quarto, eu acariciava carinhosamente o Cookie, afundando a mão em seu pelo. Ele, com os olhos arregalados, olhava fixamente na direção da casa, sem nem piscar.
Os pinheiros balançavam de um lado para o outro e minúsculos galhos se desprendiam dos imensos caules colossais. A muralha de pedra que dividia os bairros estava esbranquiçada pelo excesso de chuva que escorria pelo chão e descia para os esgotos pluviais.
Dentro do nosso quarto, eu observava as camas, onde cada um dos meus irmãos dormia de um jeito. Lameche estava junto com Dinorá, que se ajeitava na beirada, quase caindo no chão. Ele passava a noite agarrado ao seu pequeno travesseiro sujo, que não dispensava de jeito nenhum. Ariel chupava seu polegar quase o tempo todo, mesmo sabendo que aquele dedo poderia acabar mais fino que os outros.
Norma mesmo com sua saúde um pouco fragilizada, não ligava muito; já havia se acostumado e quase sempre usava as crises alérgicas a seu favor. Enquanto eu a observava dormindo, ela virou de bruços, e uma parte de seus cabelos espalhados pelo travesseiro deixava à mostra uma grande mecha rosa choque. De vez em quando ela mudava a cor do cabelo. Ela fazia trabalhos escolares para suas colegas e repassava cola na hora da prova; assim, era recompensada com bijuterias, restos de maquiagem, receitas para a pele e até tinturas para o cabelo. Não era a melhor da sala, mas estava entre as melhores. Lia muito e gostava de pesquisar nos livros da biblioteca o que não conseguia captar quando se distraía com outras coisas durante a aula.
Nos últimos meses, eu estava me dedicando o quanto podia aos meus irmãos, sobrevivendo aos poucos. Roubava para não passarmos fome, fazendo o possível para evitar que meus irmãos fossem recolhidos pelo serviço social. Não eram só eles; enquanto não atingisse a maioridade, eu também corria o risco de ser levada. Esforçava-me para acreditar que mamãe estava viva e precisando de ajuda. Ainda que isso fosse mentira, era o que me dava vontade de continuar viva, me mantendo naquele pesadelo constante.
Mais que nunca, eu deveria redobrar os meus cuidados. Já fazia quase um ano que ela havia saído de casa, e papai continuava na mesma vida, sem fazer nada para melhorar nossa situação. Ele mentia, se comportava como um alcoólatra, guardava bebidas dentro do seu quarto, fazia transparecer dificuldades para arrumar trabalho, se escondendo por trás de um vício que nunca existiu.
Aos poucos, éramos deixados quase sozinhos, morando em um apartamento que não oferecia a menor condição de sobrevivência.
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Eram quase 5h da manhã e eu estava vestindo aquela roupa estranha, escondendo os últimos fios do meu cabelo dentro do boné, sob o capuz da grande capa. Saí caminhando com meu carrinho mesmo debaixo da chuva persistente. Tinha que tentar conseguir qualquer coisa, pois toda a nossa comida já havia acabado e não podíamos depender de sorte. Precisava ser habilidosa, pois minhas irmãs não podiam sair de estomago vazio para a escola.
Com passos largos e cabeça baixa, sentia o suor escorrer pelo rosto. Aquele plástico aumentava ainda mais o calor do meu corpo, que já estava úmido. Em mais alguns minutos, estaria dentro daquele grande mercado.
O pessoal da limpeza puxava com força os rodos para remover todas as poças de água deixadas pela intensa chuva do dia anterior, que ainda caía, agora mais fina. As caçambas, destinadas a recolher os legumes, aguardavam alinhadas e já começavam a receber alguns deles aos poucos. Eu esperava atrás de um grande caminhão, aguardando o momento certo para pegar o máximo que conseguisse, de preferência as laranjas. Carreguei batatas, abacaxis, beterrabas e mamões. Eu passava cuidadosamente atrás dos caixotes empilhados, para que ninguém ouvisse o barulho das rodas do meu carrinho, entre elas, uma amarrada com arame.
A água jorrada pela mangueira esguichava sobre o piso áspero, arrancando até a última semente de melancia presa nos pequenos buracos do chão.
Bem ao lado da grade, discretamente levei minha compra roubada da semana. Ao me dirigir para a saída, empurrava aquele trambolho de aço sem olhar para trás, avançando pela avenida de volta para casa. Ao chegar aos portões que davam acesso à rua, ao tentar empurrar um deles com a mão, ele não abriu. Tentei girar um enorme trinco em formato de L, mas a fechadura estava trancada.
Disfarçadamente, conferia os portões, um por um. Depois que passei, alguém havia trancado todos eles, onde o movimento era intenso. Quando desocupavam as bancas, levavam em ordem todas as verduras, frutas e legumes para as caçambas, que eram conduzidas para um local apropriado.
As atividades se iniciavam na madrugada. Às 6h, chegava tudo novinho, e o grande mercado Grambel abria para atender boa parte da população de Linópolience, que movimentava o local com a entrada e saída constante de pessoas.
A capa quase arrastava no chão, assim como as dos trabalhadores naquele pátio. Com meu cabelo preso e o rosto quase escondido debaixo do grande capuz, eu passava despercebida entre os trabalhadores. Dessa forma, não notavam que eu era uma garota e nem imaginavam o que eu fazia ali.
Se o papai visse aquela cena certamente reprovaria minhas atitudes, se tratando de outras também, mas naquele dia eu precisava ir além. Enquanto eu pensava naquele olhar de amor e reprovação, bem lá no fundo do pátio avistei um buraco na grande tela de aço. Do outro lado, havia restos de lixo, como um pé de sapato, bolas de lama misturadas com capim, cabeça de boneca, pedaços de telha e outros objetos quebrados espalhados. Alguém tinha feito um atalho para se livrar das tralhas trazidas pelas enxurradas, que, durante a chuva, certamente se acumularam dentro do pátio. Depois de avaliar aquela saída improvisada, passei minhas "mercadorias" para o outro lado, que dava para um galpão de carcaças de carros. O carrinho teve que ser jogado por cima da grade. Com muito esforço, de barriga no chão, eu rastejei para o outro lado. Fui embora levando tudo, sem deixar nada para trás, naquele dia que já estava quase amanhecendo.
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A CASA DO LADO DE LA
Mistério / Suspense"Certamente você vai se emocionar com a história de, Judith Muller". A adolescente reside com seus irmãos menores e o pai que passa a maior parte do tempo ausente, no minúsculo apartamento de 38m². Ela vive na luta para manter o terrível segredo...