Ato IV: Ela.

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O treinamento do bando de carcará tem sido curioso, algumas vezes tem de realizar tarefas simples, mas não tão simples. Manhã de sábado, estavam reunidos em uma área na frente dos aposentos do mestre Tiringa.
- Limpem essa área.
- Só?
- Sem usar a mãos que vocês tem agora.
O mestre deu um sorrisinho de canto e sumiu, entrando em seu quarto e deixando eles ali com os materiais de limpeza.
- Não pode ser tão ruim.
Agulhão manifestou sem dificuldade os braços astrais para começar a varrer, já que o uso de sua expansão exigia tais habilidades, então ela havia conhecimento prévio. Rasteira e Gonzaga ficaram tentando, Gonzaga até conseguiu, mas só um brço. Rasteira desistiu, começou a usar os pés para passar um pano. Guará e Urutau se sentaram, respirando fundo e meditando por breves segundos, manifestando braços astrais diferentes das de Agulhão, algo relacionado a sua espiritualidade e aos deuses indígenas. Carcará observou cada técnica diferente, então optou por sentar e meditar, fechou os olhos.
- Quem é você?
Estava tudo escuro, uma voz suave o chamou, só havia ele e essa voz, abriu os olhos, se viu naquele espaço escuro. Havia uma mulher coberta por um manto branco e olhos escuros que o encarava.
- Perguntei quem é você.
Disse ela formando uma expressão séria, haviam braceletes de correntes em seu pulso, mas elas não eram visíveis.
- Carcará.
- Não deveria estar aqui.
- Onde é aqui?
- Minha mente.
Disse ela se aproximando, caminhando devagar, o encarou de cima a baixo, curiosa.
- Não era minha intenção, acredite. Mas quem é você?
- Luna. Não estou em uma boa situação...eu já vi você, as chamas em seus olhos.
Ela estendeu uma mão até o peito dele, e pareceu atravessar como se ele não existisse.
- Sua aura é tão conturbada...sinto como se uma faca queimando atravessasse meu peito.
Ele não respondeu, mas seus olhos, com o vazio de sempre, pareciam responder aquilo. Ela tirou a mão.
- Você está presa?
- Estou. Presa a um capitão que não queria servir, presa a uma maldição por amar quem eu não poderia amar.
- Rasga Mortalha.
- Sim.
Ele respirou fundo, olhando ela uma última vez.
- E se você estivesse livre, livre das amarras, livre do que te atormenta?
- Estaria feliz, talvez longe de tudo, procurando um amor que eu possa sentir de verdade sem consequências como essa.
Havia melancolia na voz dela, seus cabelos se moviam de uma maneira curiosa, como se fossem água correndo para baixo.
- Voe, não posso mais ficar.
- Espere!
Tudo escureceu outra vez, ele abriu os olhos, haviam quatro braços a mais em seu corpo, mãos amarelas, pareciam mais garras, com veias prateadas que fluíam. Seu bando o olhava.
- Chamem o mestre, por favor.
Disse ele se levantando, vendo o quão diferente era controlar cada braço.
- Que interessante...
O mestre analisou os braços curiosos de Carcará.
- Eu vi algo.
- Diga.
- Eu entrei na mente de uma mulher que vi uma vez, o quão perto ela tinha que estar pra isso acontecer?
- Um raio de ao menos dez quilômetros, e devia ser um pensamento preso, algo que você queria descobrir.
- Certo.
- Para o circuito, todos vocês comecem a tentar as voltas.
Eles logo foram, os braços astrais sumiram, de todos que manifestaram. Começaram o circuito. Pularam cada tronco na vertical, Agulhão, Gonzaga e Rasteira caíram, voltando depois e tentando mais uma vez. Carcará, Urutau e Guará passaram, então foram ao pequeno rio com varas curtas e finas. Urutau pousou em cada uma com suavidade, passando para o outro lado. Guará chegou até perto do fim, mas caiu no riu e nadou de volta. Carcará também caiu. Urutau concentrou energia nas mãos e começou a escalada, chegou perto do fim, usando uma das mãos para dar impulso, então com um salto, chegou ao topo, olhou para trás, Guará e Carcará passaram, Agulhão estava na metade do rio, Rasteira e Gonzaga estavam no começo do rio, logo atrás da atiradora. Ela materializou os braços espirituais, segurando na corda e descendo como uma tirolesa, chegando ao campo de bonecos, mantendo aqueles braços. Os bonecos se ergueram, estavam maiores, claro que estariam, o mestre não facilitaria. Ela saltou concentrando energia nas coxas, chutando a nuca de um dos bonecos, usando os braços para segurar nos ombros de outro, e saltar pela cabeça do mesmo, esmurrando sua nuca. Pousou no chão, deu uma rasteira no outro boneco e chutou sua nuca enquanto correu para tocar o sino.
- Dois minutos e cinco segundos, muito bem!
Disse o mestre que estava com um cronômetro velho ali.
- Capitão!
Daniel voltou da patrulha, estava próximo, mas nem tanto, cobriu uma área de cinco quilômetros com seu redemoinho, ajustou sua prótese e sentou ao lado de Tiringa.
- Mestre.
- Daniel.
Carcará desistiu do campo, enquanto Guará completou após Urutau, em seguida Agulhão, Rasteira e Gonzaga.
- Perto daqui tem um grupo de cangaceiros de sangue com uma feiticeira amaldiçoada, vi eles se preparando para atacar a barreira.
- O que diziam?
- Madrugada de domingo para segunda, mas pode ser antes.
O mestre logo recobrou a memória.
- Foi isso que você viu, a feiticeira.
- Merda...
Eles começaram a traçar um plano, fabricar balas santas e praticar as magias que usavam habitualmente contra os cangaceiros de sangue.
- Mãos como se usasse um arco, dois dedos pra frente, dois para trás.
Guará ensinava Daniel a usar o pássaro de fogo. Ele fez os movimentos, concentrando a energia nos dedos, então logo se formou ali, e disparou voando para o alvo, queimando.
- Boa, aprende rápido!
- Vem, vou te ensinar o disparo triplo.
Rasteira o chamou para perto, entregou uma carabina para ele, então mirou no alvo, e em uma velocidade tremenda, atirou três vezes, com o tempo de um único tiro.
- A Agulhão faz mais rápido ela descarrega o pente todo de uma vez, é sinistro.
Disse ele rindo, seus olhos já estavam normais no momento.
- Caraca.
- Olha minha mão, vou fazer devagar.
Ele colocou um outro pente, seis balas.
- Concentra energia nas pontas dos dedos focando em velocidade. Gatilho, libera caturcho, gatilho, libera caturcho, gatilho, baixa, dispara as últimas duas se quiser.
Ele logo fez o que havia dito, mas dessa vez espalhou os três tiros entre três alvos.
- Foca só no do meio dessa vez, vai.
Ele se afastou um pouco, Daniel até conseguiu um primeiro disparo rápido, mas atrapalhou-se nos outros dois.
- Tá tranquilo, faz de novo, respira fundo, esquece quem tá aqui, foca somente no alvo, entendeu?
Daniel acenou com a cabeça, e respirou fundo, colocando outro caturcho e realizando dois disparos rápidos, mas o terceiro ficou preso.
- Boa! Já é bom, pode praticar o quanto for necessário, o Gonzaga ali pode te ajudar a usar as vibrações de som como arma se precisar.
- Vou tentar mais um pouco, valeu.
Urutau estava preparando balas com energia pura, balas santas, como eram chamadas, eliminavam aqueles que já não tinham mais humanidade, somente caos, sangue e morte no corpo.
- Meu bem, o que pretende só me olhando?
Disse ela rindo, notando que Agulhão a admirava, estavam as duas em um canto qualquer, só as duas.
- Só te vendo. E um pouco preocupada com o que pode acontecer.
- Os rumores de crianças mortas?
- Crianças mortas e revividas por magia de sangue. Usadas como armas, crianças que já foram amadas, que já foram queridas...
Urutau colocou a mão sobre a dela.
- Sei que é difícil pensar nisso, principalmente com tudo o que você viu, que ele viu também, mas agora estamos aqui, e vamos dar paz a elas.
Ela deu um sorriso para a outra e continuou a concentrar a energia de purificação nas balas.
- Vai ver seu irmão, ele parece distante.
Disse ela olhando o capitão, ele estava em uma pequena plataforma de madeira perto da água, sentado. Agulhão foi até ele, se sentando ao lado.
- Ei.
- Tem um pirarucu-de-sombras aqui.
- O que é isso?
- É um tipo de pirarucu, só que colossal, que se alimenta de energia sombria.
Uma movimentação na água, algo em torno de quinze metros à frente, ocorreu. Era algo enorme, tão grande quanto uma pequena embarcação, os olhos da coisa brilhavam um roxo que se destacava, seu corpo era como fumaça pura, que logo despareceu na água.
- Que sinistro.
- Provavelmente nosso desafio final.
Ele jogou uma pedra longe, que saltou por alguns metros e afundou.
- Está pensando na feiticeira, não é?
- Ela é uma prisioneira, usa correntes que deixam ela se mover no máximo uns quinze metros de distância de que a prende.
- E quer soltar ela, não é?
- Todos merecem a chance de se libertar.
Ele se levantou, se esticando. Olhou para trás, Daniel estava treinando com Gonzaga, algo rápido sobre o controle de som.
- Eles estão nos seguindo. Seguem nossa energia e sabem que podemos mudar tudo - Agulhão se levanta, pondo a mão no ombro do irmão - não tenho um bom pressentimento sobre essa madrugada, e sobre todas as outras, mas eu confio no seu instinto.
Ela saiu, foi ajudar Urutau a terminar as balas. O capitão foi para o circuito tentar mais algumas vezes chegar ao outro lado, tentando melhorar seu tempo, sua concentração, sua furtividade e agilidade.
- Ei, capitão!
Carcará parou, haviam passado horas, para ele foram segundos, talvez minutos, estava nublado, bastante nublado. O capitão caminhou até Daniel, que estava preparado no momento, era madrugada.
- Todos estão posicionados em partes diferentes dentro da barreira da cidade, o mestre Tiringa está no meio, quando o sinal for disparado, devemos ir.
- Vamos nos juntar ao mestre, é melhor estar no centro.
Assim, os dois foram se movendo pelas sombras para evitar o pânico do público, pois sua fama já havia sido instaurada, e onde eles iam, os cangaceiros de sangue estavam, ou estariam.
- Capitão.
- Mestre.
Juntaram-se ao mestre no topo de uma casa quebrada no centro da cidade, estavam observando o céu nublado.
- Eles estão posicionados em quatro pontos da cidade, quando o sin-
Uma chama azulada disparou no céu, era a característica de Rasteira. Carcará, Tiringa e Daniel dispararam em um único borrão em direção às chamas azuis, sabiam que não tinham muito tempo e que Urutau, Guará, Agulhão e Gonzaga os encontrariam lá.
- SAI!
Haviam corpos no chão, eram pálidos, sem olhos nas órbitas, apenas uma chama prateada, estavam mortos, mas não totalmente. Carcará chegou disparando um círculo de chamas ao redor de Rasteira, fazendo os dominados saírem de perto, bem machucados.
- Onde está a feiticeira?
Os três adentraram o círculo junto de Rasteira, tentando encontrar os cangaceiros de sangue. Rasteira parecia perdido, nunca tinha visto seres como aqueles, marionetes que já foram o amor de alguém, um filho, uma filha, um marido, uma esposa, cadáveres agora usados para um propósito que eles não concordariam.
- Capitão, ali, acima das árvores!
Carcará viu algumas árvores secas com poucas folhas, lá estavam alguns cangaceiros de sangue, e um deles era diferente, tinha correntes nos pulsos que não estavam ligadas a nada, e perto havia a feiticeira, com suas vestes brancas e olhos negros. O que era diferente usava um manto negro cobrindo o corpo e uma máscara rachada que expelia fumaça em tons negros e prateados.

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⏰ Última atualização: Jul 24 ⏰

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