Prólogo

14 2 0
                                    

Seu olhar vagou. Direcionando-se para uma janela que em nada tinha de relevância para si. Era, como tantas outras coisas, uma breve distração. Ou talvez uma fuga, já que não era hipócrita o suficiente para negar.

As nuvens estavam particularmente escuras hoje. Não seria uma surpresa se chovesse. São Paulo já havia lhe ensinado que essa era uma comum reviravolta em uma dia tão ensolarado. Talvez então devesse voltar direto para casa, a água tendia a ser um empecilho bem desagradável...

Seus dedos batucaram ritmicamente no apoio da poltrona na qual estava sentada por quase meia hora. Um acento de couro terrível que fazia com que se sentisse particularmente suja com uma quantidade nojenta de suor, mas não estava prestando atenção nisso agora. Havia uma melodia dançado por sua mente e quase poderia cantarola-la agora mesmo, se o homem a sua frente já não a julgasse o suficiente por tão pouco.

Como era mesmo a letra? These are the things, the things we lost, the things we lost in the fire, fire, fire.

Era no mínimo irônico. Talvez devesse compartilhar. Poderia apostar que ele adoraria a abertura para desenvolver o assunto que a trouxe aqui em primeiro lugar. Era uma pena que o Doutor Ramos, por completo, a entediasse. Ou, mais sinceramente, a intimidasse.

Como era mesmo o nome disso? Transferência? Bem, não é como se importasse.

Esse homem não tem culpa alguma por sua construída aversão à médicos e é o oposto de alguém desagradável. Ele só ficava lá, distante, com suas palavras espertas e sorriso provocador. Era um homem de uma extraordinária pele escura e olhos atentos, que poderia ser a personificação de uma obra de arte na forma com que ficava a observando, ali parado, em um silêncio paciente.

Parte de si tinha a reação de se encolher e rosnar para ele por todas essas coisas. Por seu desprezo e sua arrogância. Mas era por isso que continuava voltando, não é? Ninguém mais parecia tão fora de seu alcance. Tão longe de lhe oferecer pena. Era por isso que não precisava se conter. Estava segura aqui e, mesmo que mordesse com aspereza violenta ou chorasse com a tristeza que tanto tentava esconder, aquele era alguém que em nada seria afetado por isso.

A sensação chegava a ser desnorteadora de tão aliviante.

Ela também gostava do joguinho que eles dois tinham. Se entretinha em lhe arrancar reações, do mesmo modo que sabia que ele lhe cutucava nas feridas com satisfação.

Existia algum conforto em ser só um ratinho diante de um predador. Poucas coisas lhe motivavam tanto a levantar a cabeça e reagir. O que poderia dizer? Sua adoração por um desafio era uma verdade inquestionável.

Mesmo que isso fosse um pouco mais difícil agora.

- Gisele. – Doutor Ramos chamou, contemplativo, mas apenas recebeu um eloquente “hm” como resposta. Ele, é claro, sabia que havia ganhado sua atenção, mesmo que seus olhos permanecessem vagando para longe dali. – Como está se sentindo com a sua eminente surpresa de aniversário?

Ah. Era de se esperar que esse assunto apareceria. Porém não sabia nem por onde começar.

Seus amigos, bem intencionados como eram, estavam planejando uma viagem para anima-la e obriga-la a enfrentar os próprios traumas. Algo sobre um cruzeiro de verão supostamente incrível que seria a realização de seus problemas e a extraordinária solução para sua letargia.

Eles haviam começado a organização a tanto tempo e se esforçavam tanto para manter em segredo, tão adoravelmente, que a parte mais empática de seu ser tomou a decisão de continuar fingindo que não sabia de nada quase imediatamente. Gregory e Anne já estavam familiarizados com a sua super habilidade investigativa, também conhecida como ansiedade, porém o teatrinho continuaria até o momento que descobrissem que a atuação era outra de seus múltiplos dons.

O que não era exatamente uma informação tão complicada de se encontrar, pelo amor de Deus, ela foi bailarina por mais de uma década! Não que os culpasse por não pensarem nisso tão facilmente, não da forma com que eles se conheceram. Afinal, a dança era uma das muitas coisas que havia sido obrigada a deixar para trás...

Mas, pelo menos disso, ela não se arrependia.

- Hidrofóbica. – E para o seu crédito, o estremecimento que tomou o seu corpo não foi nenhum exagero.

O homem ganhou o foco de seus olhos.

- E o que faz você manter a ideia, mesmo que ela lhe cause incomodo? – Houve um ligeiro contrair de sobrancelhas. Sua tagarelice passada sobre a paixão explícita que ainda sentia por qualquer extensão oceânica com certeza a colocava em contradição, entretanto essa era uma característica que estava se familiarizando em possuir.

- Uma estúpida convicção sobre coragem, com certeza. – Seu lábio carnudo sofreu com uma mordida expressiva, conforme tentava elaborar. – Olha, eu já estive em mar aberto diversas vezes, ok? Mas nunca desde o.. – Sua mente se embaralhou para tentar não deixar a pausa muito longa. – acidente. É como quando eu não gostava de alturas, então só de pensar em olhar para baixo e não ver o fundo, eu... – Lhe envergonha admitir. – Tudo volta.

O enjoo embrulhou o seu estômago.

Não sentia a necessidade de apontar que a comparação não era exatamente justa. Uma vez que cair de um prédio alto provavelmente seria mais misericordioso do que o mergulho desamparado em águas tão profundas. Porém, considerando que nenhuma das coisas positivamente iria acontecer, de preferência não de novo, o ponto de observador em altitude assustadora continuava o mesmo.

- Você mantém a atitude de enfrentar seus medos até se tornar confortável com eles. – Suas mãos folhearam o caderno que era sistematicamente usado no tempo que passavam juntos. – Pulou de paraquedas para enfrentar a altura. Mais de uma vez. Em uma situação semelhante, você disse que continuou tendo prazer em pilotar mesmo depois que isso lhe trouxe um trauma. O que é diferente agora?

O que era diferente? Não era exatamente esse o ponto que a trazia até aqui?

- Bem... – Uma risadinha melancólica lhe escapou. – Eu posso ter influenciáveis inspirações de invulnerabilidade... e imprudência, mas isso é mais como algo que a minha mãe diria.

A falta de sua perna esquerda validava os argumentos dela, mas nunca lhe deu crédito por isso. Não antes e nem o faria agora. Motos continuavam muito divertidas! E, embora ainda tivesse muitas memórias terríveis sobre as consequências daquele dia ruim, elas não eram sobre essa perda em específico.

-  Você me disse que, apesar do medo, nas outras vezes estava se sentindo extasiada. Como foi que percebeu essa sensação mudando? – Parecia que ele já sabia a resposta de qualquer que fosse o enigma que estava propondo, mas Henderick Ramos era alguém que exalava a onisciência, com a pitada certa de implicância para alguém que não compartilhará de suas convicções, então, francamente, é intrigante saber que não entendia o que realmente se passava por sua cabeça.

- Há um grande vão entre o antes e o depois de se ter a própria realidade despedaçada. – Sua têmpora latejou, então foi quase um reflexo automático simplesmente levantar a mão e pressiona-la com um pouco mais de força do que deveria. – Nenhuma das pessoas que me acompanharam, que me motivaram, estão aqui agora. Então sim, é um pouco mais difícil, mas passos de bebê são melhores do passo nenhum, não?

Aqueles incomuns olhos amarelos brilharam em diversão.

- Caminhar como um bebê não seria você tentando se provar para eles? – Ele levantou a mão, a impedindo de contraria-lo ao mesmo tempo que começou a enumerar. Número um e dois. – Mamãe e papai, seguindo em frente porque é o que acredita que eles iriam quer, - Número três. – seu irmão Davi, para ser como ele, e não nos esqueçamos do tópico mais consciente, - Número quatro. – o excelentíssimo ex namorado, porque sua vida encharcada de culpa a enoja e você não suportaria viver do mesmo jeito.

Esse era um daqueles momentos em que se tinha a certeza absoluta que seu próprio rosto estava se contorcendo em uma expressão completamente indigna, por tamanha exasperação que a tomou. Ainda assim, ela viu aqueles lábios se erguendo.

Havia mordido a isca, ponto para ele.

- Acha que estou fazendo isso por eles? – Sua voz foi ainda mais óbvia na maneira com que se elevou. – Eu faço isso por mim! Vivi a maior parte da minha vida seguindo o que achava que eles queriam que eu fizesse, sempre me contendo, me moldando, porque não importa o que a porra do Davi fizesse, era de mim que eles tinham medo! – Gisele se obrigou a parar por alguns segundos, tomando uma respiração profunda. – Sempre me olhando com tanta ansiedade, como se eu fosse um animal prestes a ataca-los! E eu tentei, tentei me domesticar para agrada-los, mas é claro que isso não seria o suficiente... – Seus olhos fugiram para observar a janela novamente. – Foi meu ex que me deu perspectiva de vida pela primeira vez. Fazia as coisas valerem a pena. Até me acertei com o meu irmão por causa dele! Só que éramos dois jovens idiotas na universidade e ele iria se torturar por uma vida inteira para me compensar o que se convenceu de que me fez perder. – O suspiro que saiu de seu peito era mais irritado do que triste. – Estou pouco me fodendo. Por que eu me manteria presa aos gritos de pessoas que não estão mais aqui? Principalmente com todas as suas mentiras e segredos.

Suas mãos se fecharam por puro reflexo. Logo, não ter cravado as próprias unhas em sua carne era, de fato, uma prova de que esse tempo aqui resultava em alguma coisa.

- Porque você se importa. – Cada palavra parecia dançar como um ronronar. – Se sustenta em ressentimento para se distanciar do fato de que a dor da perda é insuportável.

Mecanismos de defesa, hein?

Que culpa tinha se seu cérebro brilhante era mais eficiente em lidar com suas próprias merdas sem que precisasse induzi-lo a isso? Estava ciente que haveria um preço a se pagar posteriormente por seu alívio de agora, mas essa era apenas mais uma razão para de viver como se não houvesse amanhã.

Porque, verdade seja dita, se encarasse suas memórias mais vividas, suas memórias mais horríveis, com que caralho de força conseguiria continuar? Era mais fácil pensar que tudo aquilo não passou de um delírio infeliz, ou outro meio de defesa muito realista! As pessoas sempre a elogiaram por sua criatividade, portanto seria mais coerente acreditar que esse era o único fator que mudou a sua percepção.

Era mais lógico. Mais simples. Racional!

Porém, mesmo depois de meses, mesmo em sua fantasia tosca de normalidade, ainda não havia conseguido colocar em palavras o testemunho que a atormentava, porque se o dissesse, se finalmente o dissesse, então isso não tornaria aquilo que suspostamente viveu ainda mais real? Mais concreto?

Era mais fácil esquecer e se afogar em fugas estúpidas com a mesma intensidade com que quase se afogou na água do mar. Mentes tendiam a ter delírios em momentos de crise como esse, não é? Sempre há aquela quantidade imensa de sal para culpar também. Muitas desculpas para se encaixar.

O problema estava no fato de que, mesmo sabendo de tudo isso, a mera percepção da névoa aparecendo lá fora a apavorava. Do que eles estavam falando mesmo?

Por favor, por favor, seja só a chuva. Seja só a chuva. Só poeira. Por favor.

- Gisele? – Henderick a chamou de volta, em um tom que parecia demonstrar preocupação. Ele sabia que ela não estava respirando? Deveria saber, já que sabia de tantas coisas, mas não conseguia olhar para seu rosto e buscar qualquer confirmação.

A névoa lá fora estava aumentando e agora havia um som de tambor muito forte a impulsionando com tanta força que o sentia machucando seu peito. Seus resquícios de sanidade a forneceram a informação de que esse era simplesmente o seu próprio coração, mas como poderia um órgão seu carregar tanto sofrimento? Esse papel deveria servir apenas a sua cabeça!

Doutor Ramos se levantou em um momento que não conseguiu acompanhar e se postou diante da janela, também a encarando como se avaliasse a sua ameaça. Foi então que ele tranquilamente a destravou e a abriu, de forma tão repentina que não conseguiu evitar de se erguer em um pulso desajeitado para tentar impedi-lo. Apenas para ser paralisada logo em seguida.

Não pelos horrores que a assombravam, mas pelo barulho de uma cidade viva lá fora, das buzinas ensurdecedoras de um trânsito caótico e, principalmente, lá no fundo, pelo barulho das gotas d’água se chocando contra toda aquela movimentação inquieta.

O alívio que a tomou foi tão gratificante quanto envergonhador. Quase sentia o peso daquela atenção fisicamente a empurrando para baixo.

- Problemas para lidar com o luto, né? – Começou a dizer, quando achou o contínuo silêncio insuportável. – Espero que seja só isso... – A última parte saiu mais para si mesma, baixinho e com uma rouquidão que não estava em sua voz anteriormente.

Henderick parecia ter algo a dizer sobre isso, ele sempre tinha algo a dizer sobre tudo, mas o tempo estava a seu favor como um milagre gentil e o relógio marcou o final da sessão de hoje. Gisele viu a boca dele se fechando em contestação e se forçou a encontrar alegria com a pequena vitória, enquanto se movia para aproveitar a deixa e reunir suas coisas para partir.

Já estava quase literalmente fugindo pela porta quando o ouviu falar de novo, por suas costas.

- Pense sobre suas últimas afirmações durante a semana. – Ah, claro, porque ele nunca conseguia ficar sem a palavra final. – Nos vamos na próxima terça.

Isso a fez rir, só um pouquinho.

- Na próxima terça eu espero já estar a vários quilômetros do continente. Tire o horário de folga, como um presentinho meu! – Ela abriu a porta e se virou para acenar com deboche, só porque podia. Porém o movimento saiu completamente desleixado.

Havia uma mão na janela, grande e vermelha como sangue, com garras afiadas e uma energia borbulhante que passava a impressão de que sua carne estava fervendo.

Gisele não ficou mais um segundo ali para evidenciar suas alucinações, ou alertar seu psicólogo sobre temas muito mais absurdos para se tratar. Saiu para o corredor e puxou a porta consigo, tampando seus ouvidos conforme mancava para longe e se forçava a se convencer de que os grunhidos que estava ouvindo era uma simples consequência de sua negligência.

Ela se ajeitou por puro instinto e sincronizou a perna direita com a prótese para começar a correr quando começou a ouvir impactos e a porra de um tiro. Essa era São Paulo, se obrigou a racionar, violenta e cheia de poluição, afeta nossos sentidos, não é isso que os outros sempre dizem? Morava aqui a pouco tempo, ainda podia usar a carta da ignorância. Precisava se apoiar na ignorância.

O tempo que gastou para entrar em seu carro e garantir a própria vida passou em branco. Mal se lembrava do que aconteceu entre aqueles segundos de desespero e estar presa na lentidão do horário de pico, embora agora tivesse a certeza de que pegou uma rua completamente errada em algum momento e era por isso que estava parada aqui.

Culpa a tomou em seguida. Deveria ligar para a polícia? Ela deixou Henderick Ramos para trás, nas garras de um monstro! Poderia se convencer da loucura, mas jamais se perdoaria se ele também morresse por sua impotência.

Os minutos angustiantes que levou até encostar o carro na primeira oportunidade quase a fizeram chorar, mas logo estava ali, segura e com o celular na mão, digitando uma mensagem simples só porque precisava saber, porque não dormiria de noite se não soubesse. Enviou algo como “desculpa a fuga abrupta, é um saco pegar trânsito com a chuva”.

E depois esperou. Esperou. Esperou. Por dez minutos que pareceram horas e que foram gastos rolando por reels inúteis no Instagram para conseguir pelo menos uma dose de dopamina para se acalmar. Não funcionou, é claro, mas a distraiu em uma bolha de tempo suficientemente bem.

Maldita hora que resolveu parar de fumar.

Porém as batidas de seu coração se regularam novamente com uma simples notificação, uma resposta que quase vinha acompanhada de um revirar de olhos: “Se é o que você diz”.

Era incrível respirar de novo e a oxigenação veio com um plano claro para se fazer a seguir. Foda-se o pulmão, precisava de nicotina.

Ordem Paranormal: Faíscas de estupor Onde histórias criam vida. Descubra agora