O início

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Eu nunca pensei que meus discursos na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro fossem me levar a uma situação como essa.

Desde que fui eleita, sabia que enfrentaria muitos desafios, mas jamais imaginei que um simples pronunciamento sobre a violência policial pudesse mudar tanto a minha vida. Naquela manhã de quarta-feira, o sol brilhava intensamente sobre a cidade, mas dentro do plenário, o clima era tenso.

Os jornais estampavam mais uma operação desastrosa do BOPE, com civis mortos e feridos. Eu estava indignada, e não conseguia mais ficar calada.

-Precisamos de uma polícia que proteja, não que espalhe terror nas comunidades!-minha voz ecoou pelas paredes da Assembleia.

-Essas ações brutais não são justificáveis e apenas perpetuam o ciclo de violência.-A reação foi imediata. Alguns colegas me apoiaram, enquanto outros me olharam com desprezo e murmuravam 'esquerdolixo'.

Mas a maior surpresa veio quando, mais tarde, recebi um telefonema. Do outro lado da linha, a voz grave e segura do Capitão Roberto Nascimento me convidava para um encontro. Ele queria discutir minhas críticas pessoalmente. Eu hesitei, seria loucura sair para encontrá-lo depois de ter "manchado" sua imagem. Pensei, repensei e aceitei. Sabia que precisava entender melhor o outro lado da história, era meu trabalho como deputada, mesmo que isso significasse confrontar meus próprios valores morais.

Cheguei ao local combinado com um misto de nervosismo e determinação. O café no centro da cidade era discreto, quase anônimo.

-É bom eu não morrer hoje - Sussurei enquanto atravessava a avenida até o café. Nunca se sabe o que se passa na cabeça de outra pessoa, eu que não confio. Ainda mais nele.

Quando entrei, meus olhos percorreram o local e imediatamente encontraram os dele. Roberto Nascimento era ainda mais imponente do que eu imaginava, com uma postura que exalava autoridade e confiança. Me pergunto se esse tipo de pessoa possue medo de algo? talvez medo de ver as coisas como realmente são!

-Deputada Campos, é um prazer finalmente conhecê-la - Ele disse, levantando-se para me cumprimentar. Seu tom era formal, mas seus olhos tinham um brilho curioso.

-Capitão Nascimento, obrigada pelo convite! - Respondi séria, tentando manter a compostura - Realmente precisamos conversar.

Nos sentamos, eu olhei em seus olhos e ele já me olhava sério, mas com um olhar de quem queria dizer algo, presumindo o que ele diria já logo me adiantei.

-Capitão Nascimento, eu queria me desculpar sobre o ocorrido de antes... As coisas acabaram saindo do controle e ofensas foram dirigidas ao seu Batalhão. Acredito que seja sobre isso que quer conversar - Nascimento me escutou e não disse nada além de abrir um sorriso convencido e pigarrear

-Deputada, não se preocupe em pedir desculpas sobre as palavras chulas que seu partido se referiu ao meu Batalhão. Os senhores não nos ofenderam, pois temos total consciência de que o que fizemos, teve de ser feito - Parou e pensou um pouco antes de continuar.

-Você sabe muito bem que a culpa da morte dos anjinhos que vocês tanto defendem não foi do meu Batalhão. A culpa foi de vocês que defendem e protegem esses vagabundos com unhas e dentes - Ditou em um tom baixo e forte, querendo que eu realmente acreditasse naquilo.

Respirei fundo, eu realmente achei que teríamos uma conversa civilizada, mas parece que o Senhor Capitão só quer falar, que de novo, nós financiamos o tráfico de drogas.

-Capitão, entendo sua frustração - comecei, tentando manter a calma diante da acusação. - Mas é justamente essa visão simplista que perpetua o problema. Não se trata de defender bandidos, mas de buscar soluções que não envolvam mais sangue derramado. Precisamos quebrar esse ciclo de violência.

Nascimento me olhou com intensidade, como se tentasse decifrar minhas palavras. Ele respirou fundo antes de responder.

-Deputada, não estou aqui para justificar mortes, mas para proteger vidas. E às vezes, isso exige medidas extremas. Você já esteve numa favela durante uma operação? Já viu o terror nos olhos das pessoas? - Ele fez uma pausa, e seus olhos endureceram. - Eu já, muitas vezes.

Eu queria responder, mas suas palavras me fizeram pensar. Eu realmente entendia o que acontecia no chão, ou estava presa na minha visão idealista?

-Capitão, eu cresci em uma comunidade. Sei o que é viver com medo, mas também sei que a violência policial só aumenta esse medo. Há outras maneiras de combater o crime. Investimento em educação, oportunidades de emprego...

Ele interrompeu, balançando a cabeça.

-Essas são soluções de longo prazo, deputada. Enquanto isso, precisamos de ação. Não posso esperar uma geração para ver os resultados. Tenho que proteger as pessoas hoje, agora.

Minha paciência estava se esgotando.

- E a que custo, Capitão? Quantas vidas inocentes serão perdidas no caminho? Não podemos simplesmente ignorar os danos colaterais das suas operações.Ele inclinou à frente, a expressão dura e inabalável.

- O custo é alto, sim, mas é um custo necessário. Estamos em guerra, deputada, e em guerra, há baixas. Você e seu partido não entendem isso. Vocês vivem em um mundo de idealismos, enquanto nós lidamos com a realidade. Se não fizermos o que é preciso, essas comunidades estarão perdidas para sempre.

Eu cruzei os braços, sentindo a frustração crescer.

- E você acha que mais violência é a resposta? Acha que com mais balas e mais sangue vai resolver o problema? Isso só gera mais ódio, mais revolta. Precisamos de uma solução humana, que trate a raiz do problema, não só os sintomas.

Nascimento riu, um som seco e sem humor.

- Solução humana? Você acha que os traficantes se importam com soluções humanas? Eles entendem uma única linguagem: a da força. E é essa linguagem que temos que falar, se quisermos sobreviver.

Eu balancei a cabeça, sentindo a distância entre nossas visões se alargar ainda mais.

- Então, é isso? Estamos condenados a repetir os mesmos erros, perpetuando a violência? Você não vê outra saída?

Ele me encarou, os olhos duros.

- Não, deputada. Essa é a única saída que vejo. E se você não consegue entender isso, então estamos perdendo tempo aqui.

A conversa tinha chegado a um impasse. Era claro que, apesar dos nossos objetivos em comum, nossos métodos eram irreconciliáveis.
Eu me levantei, determinada a não deixar que essa diferença nos afastasse completamente.

- Vou continuar lutando por aquilo em que acredito, Capitão. E espero que, algum dia, você abra a cabeça e deixe de ser um cuzão que acha que tudo se resolve com soco!

Me levantei claramente irritada e saí, olhei para trás e ele continuava sentando me olhando, com o mesmo olhar, nossa conversa não mudou nada.

O abismo entre nós - Capitão NascimentoOnde histórias criam vida. Descubra agora