I. Jimin

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A respiração do sacerdote se condensava em filetes de bruma quando ele saltou do dorso de Elora. Mãos segurando a bainha do hanfu tingido em vinho para que o tecido não se rasgasse ante ao atrito com as escamas de seu dragão.

Acariciando de leve com a palma da mão o focinho dela — Elora fechando os olhos iridescentes ao sentir o toque carinhoso —, estendeu o braço para que a criatura alada se convertesse em tinta e rastejasse pela pele do sacerdote até entremear-se à sua tatuagem, colorindo-a.

Ela era um fragmento de sua alma, manifesta em uma ilustração em ouro e alabastro cravada em sua derme desde que nascera. Quando se desprendia da pele de Jimin, tornando-se um dragão agora em tamanho adulto, a tatuagem sintetizava-se em mero contorno preto e branco em seu braço direito.

Com corpo oblíquo e escamoso, sustentava-se sobre um conjunto de quatro patas potentes com as quais caminhava nas correntes de ar. Seu tom de floco de neve lhe permitindo de forma sorrateira confundir-se nas nuvens de verão, tornando Park Jimin um homem perigoso mesmo à luz do dia.

— Deseje-nos sorte, Elora — sussurrou contra a pele, sentindo a tatuagem aquecer de leve antes de abrandar-se numa quase carícia.

O céu de um profundo azul acima deles não carregava consigo vestígios de chuva, algo tão diferente das estepes nubladas onde viviam. Contudo, para além do território das águias,  no extremo Sul, começava a planície congelada que se estendia por toda a costa oriental. O sopro do vento advindo dela tornando também aquele um lugar frio.

Estavam muito distantes de casa e o único vislumbre do Norte que tinham era o conjunto de duas luas que, dali, estavam quase alinhadas em paralelo muito embora Jimin soubesse que uma coroava o limiar de seu reino enquanto a outra demarcava o território dos dragões do Leste.

Um conjunto de jardins suspensos no ar formava a morada das águias. Nove rochas íngremes flutuando sobre o mar do Sul em extensões de terra instável. As correntes de ar provocavam erosões que tornavam o solo propenso a fissuras, um passo em falso culminando em queda que o levaria à morte. 

Guardas os observaram se aproximar, não lhes oferecendo resistência ou dirigindo-lhes a palavra. Permaneceram imóveis em seus trajes áureos emplumados com carmesim enquanto o grupo de visitantes passava por eles, seda fria resvalando no piso de arenito à medida que Park Jimin atravessava o pórtico do castelo das águias, sendo seguido pelos outros dois sacerdotes que vieram consigo naquela tentativa desesperada, seu último átimo de esperança.

A luz solar que lhes tocava a pele pouco fazia para aquecê-los, os três dragões sentindo um frio que envolvia seus ossos.  Dentro da cúpula das águias, um domo de vidro permitia que contemplassem o céu, raios luminosos entremeando-se às sombras de paredes arqueadas e pilastras de basalto. 

— Bem-vindos — a rainha das águias lhes cumprimentou. Sua voz soando em eco que se propagou pelo salão quase vazio. Atrás de seu trono, uma enorme estátua de ave curvava as asas como se para abraçar a monarca, bronze compondo as cores dos rasgos em rocha que imitavam as penas do pássaro.

As unhas da rainha se assemelhavam a garras e a coroa em sua fronte era tecida em um padrão que lembrava penas embebidas em ouro. Expressão neutra na face angular, lábios tingidos de vermelho, olhos aquilinos esfumados com nanquim.

Pelo que Jimin sabia, ela fora realmente uma águia durante o instante de seu nascimento. Os sussurros que se propagavam entre os outros  reinos sobre aquele povo eram incertos, mas quase todos os rumores se detinham no detalhe perturbador de que as águias geravam seus filhotes a partir de ovos postos pelas criaturas materializadas a partir de seus fragmentos de alma em lugar de serem geradas na forma humana dentro do útero de suas fêmeas.

— Viemos em busca de sua orientação, senhora — Lee Felix verbalizou, fazendo Jimin suspirar, temeroso. Aquele sacerdote, dois anos mais novo que ele na contagem imortal, era gentil em demasia, não podendo  entrever os perigos por não chamar Kim Chungha de Sua Majestade.

Sardas beijavam o rosto de Felix como se os estilhaços de uma estrela tivessem lhe ricocheteado a face. Tanto quanto Jimin, ele ainda estava nos primeiros milênios de sua imortalidade. Para os humanos, tinha dois mil e duzentos anos, mas entre as criaturas perenes do mundo etéreo Felix quase não passava de uma criança, seu vigésimo segundo aniversário tendo sido ainda naquele Outono.

— E eu tenho aguardado por vocês já há algum tempo — ela respondeu. Seu timbre sem indícios de que se ofendera com a falta de tato do visitante.

O reino das águias fazia predições do futuro, lendo os vestígios dos astros no céu. Jimin e os outros seis sacerdotes do clã da Beleza por isso concordando em consultá-las para que lhes dissessem um modo de conter a enfermidade que deteriorava as almas dos dragões desde o último inverno.

Seu povo, em oposição aos dragões da corte do Leste, não se dedicava à forja e ao manejo de armas. O clã da Beleza lidava com poções afrodisíacas e o estudo de venenos. Essa diferença mostrando-se obsoleta ante à febre que lhes assolava agora. Os dois reinos dos dragões impotentes em seu passo desgovernado em direção à ruína, não importando que rezassem para divindades diferentes ou lidassem com a doença de modo diverso. Nenhum de seus alquimistas, versados na arte de produzir medicamentos dos mais variados tipos, havia obtido sucesso em suas tentativas de encontrar uma cura. 

— Vossa Majestade pode nos ajudar a conter a febre? — Lee Donghun inquiriu, seus modos sempre tão polidos. Trançara os cabelos e os prendera com fitas de seda. A trama de fios loiros se derramava por sua nuca, tinham um tom embebido em prata que fora manchada por sumo de cereja.

Chungha sorriu, tocando com a ponta dos dedos a envergadura das asas da estátua e lhe acariciando em um gesto displicente que dizia aos três sacerdotes sobre ela só lhes ajudar porque seu reino se responsabilizara pelos murmúrios da Fortuna, não porque a deterioração dos dragões lhe apiedasse de algum modo.

— Cytherea e Ultor à cada alvorecer se aproximam um pouco mais. Elas logo se tornarão uma e, no entanto, aqueles que lhes cultuam recusam-se a também fazê-lo — a rainha contou, deixando que entrevissem a tatuagem da águia em uma de suas pernas ao cruzá-las e deixá-las nuas em detrimento da longa fenda do vestido estampado com um arranjo floral quase transparente que se alargava logo abaixo da linha do quadril.

Cytherea era a lua da deusa da Beleza. Um globo vermelho visível no céu diurno que no poente se convertia em arco de luz rubra, em oposição a Ultor, a lua do deus da Guerra. O astro azul cultuado pelos dragões da corte do Leste era um globo durante a noite e a cada aurora se tornava um arco iluminado.

— Quando as luas se tornarem uma só, os reinos de vocês devem estar unidos em matrimônio ou toda a sua espécie sucumbirá à enfermidade.

um conto sobre duas luas 🎐 jjk+pjmOnde histórias criam vida. Descubra agora