"A verdade é um prisma nebuloso, revestido pelos reflexos ondulatórios do mar: sua face não pode ser visualizada em nitidez, é necessário aproximar-se do cristal para enxergar o que contém em seu interior. As correntezas levaram os pertences deixados às margens da ilhota, o tempo discorreu sobre olhos — embora distante das ondas, escuto-as como uma nebulosa lembrança de meu passado. Revestido em meus sonhos mais aterradores, nos fragmentos de meus registros, uma epifania destilou seus raios por dentre a escuridão, a alvorada de minha razão.
Em todos estes meses percorridos em alto-mar, pensávamos que o maior de nossos problemas fosse os piratas, os mercenários, quiçá a fome... Sobretudo, sob os desígnios da descoberta de novas terras, de prestígio a ser ornamentado abaixo de nossos nomes. Em ambas as questões, estávamos errados, perpetuamente equivocados. Não fomos enviados com estes propósitos, mas usados como um filete de esperança ao nosso povo, uma vez que o verdadeiro cerne do problema reside à sombra de suas ações. O último ataque à ilha é a prova límpida deste fato".
Estava redigindo a próprio punho em minha pequena escrivaninha, Oshawott adormecido em meu colo. Em minhas costas, a porta fora sorrateiramente aberta, causando um ranger que, a primeiro momento, não fora a mim um movimento notório. O anoitecer envolvia a paisagem afora, tão silencioso quanto às profundezas de uma caverna, ora enfeitado pelo canto taciturno dos noctowls. Em passos sorrateiros, Ítalo aproximou-se de meus ombros, repousando sua mão gélida à superfície amadeirada:
— Está tarde... Você deveria estar dormindo. — Prenunciou, levando os olhos a bisbilhotar o meu manuscrito. De supetão, tornei as folhas para dentro da pasta que levava comigo. — Não entendo o porquê para ainda escrever. Você sabe... A chance de voltarmos com todos estes ataques recentes é cada vez mais irrisória. Os riscos são grandes e, como você mesmo está bem ciente disso, nosso grupo não é composto pelos mais corajosos. — Em suas palavras, continha o lado oposto de seu bom-humor e carisma, seu negativismo incomparável. Soava como um desabafo.
— Este é justamente o motivo para que eu não pare de escrever, Ítalo... — Os meus dedos adentraram as madeixas, posicionando os fios que cortinavam minha testa para atrás. Por detrás dos óculos, meu olhar cravava sob o homem à minha frente. — Você não vê? Os ataques não vão parar. Nossa sentença de morte fora assinada há muito tempo, em antecedência à nossa maldita partida. Não fomos encarregados pela descoberta, sobretudo pela fuga. O Rei queria que deixássemos o continente com a premissa de que traríamos uma nova vida ao nosso povo, um lugar onde os humanos e os pokemons pudessem conviver em harmonia! Harmonia essa que os homens cujo nos lideram ceifaram com suas próprias mãos... — O pequeno Oshawott despertou diante do discurso ferrenho, abraçando um de meus braços, choramingando. Acolhi a pequena criatura em um abraço, ninando-o em meu peito.
— Você deixou com que a atmosfera desta ilha te contaminasse. Este discurso de harmonia e paz nunca fora uma verdade para ninguém. O nosso êxodo nunca fora um ideal, mas uma realidade. Estamos em guerra, Theodore. O canhão está apontado para as nossas cabeças, prestes a disparar e você está preocupado com essa história de harmonia. — Era ácido e conclusivo em sua fala, um pouco agressivo. Eu sabia que não queria me machucar, embora expressasse isto muito mal, mas ele acreditava em suas palavras com uma absoluta veracidade e lutaria para discernir seus dogmas. No entanto, seu tom rude fora dissolvendo-se em compreensivo. — Theo... Eu entendo o quão contente esteja com a vida nesta ilha, com o contato com essas pequenas criaturas. Não me entenda mal, eu também as amo, mas está longe de ser a nossa realidade...
— Não precisa ser... — Deixei meu companheiro pokemon em sua pequena cama, localizada ao lado da mesa. Meus dígitos percorriam o interior dos compartimentos da maleta, cessando a procura ao detectar o envelope desejado. Era um arquivo sobre as espécimes mais incomuns, denominadas popularmente de "Lendários". — Há mais de três décadas desde a última aparição de um pokemon lendário, dada à miscelânea de registros de cientistas no mundo todo. O último registro declara que a última aparição de Tornadus fora para intervir na guerra marítima entre os continentes do Sul e do Norte...
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Contos De Cornucópia: Vapor & Sangue
ActionNum mundo devastado pela tecnologia a vapor, acompanharemos uma das poucas gangues remanescentes desse período turbulento da história, seremos mestres de nossos destinos, ou apenas mais um mártir diante da crueldade e barbárie humana?