S01E06 - FAMÍLIA

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A força do meu antebraço pressionando a jugular do homem de cabelos ruivos interferia na sua respiração, mas ele permanecia resistente, mesmo com a passagem de ar por suas narinas se tornando mais restrita. Sua percepção visual parecia se intensificar à medida que o meu fôlego se tornava mais arfante, e o brilho em seus olhos voltava a assumir uma tonalidade alaranjada. Gradualmente, senti as pulsações das minhas veias diminuindo e a minha respiração voltando ao normal, momento em que o libertei do confinamento contra a parede.

— Você precisa aprender a se controlar, garoto. — Ele empurrou meu peitoral com as palmas das mãos abertas. — E nunca mais mexa na minha coleção. — Disse, recolhendo a jaqueta que havia derrubado da arara.

Havia algo singular na maneira como Leoni me olhava. Não se tratava apenas de um instinto de proteção familiar. Parecia que eu o fazia recordar alguém, que ele não via há um longo período. Uma reminiscência vívida, esquecida, mas ainda assim carinhosa ao mesmo tempo que dolorosa e ardil. Se esse sentimento estava evidente em seu olhar, só posso supor o quanto ressoava em seu coração.

— E quem irá me ensinar... Pai? — Pronunciei a última palavra com um leve toque de ironia.

— Eu não sou seu pai. — Ele ajustou a jaqueta de volta ao lugar e arrumou a gola de sua blusa desajustada. Leoni se dirigiu ao frigorífico, pegou uma garrafa de vodca, mas não nos ofereceu, nem a mim, nem a Felícia. — Meu irmão era. Castern Vulpard. Ele morreu te protegendo também. — Me contou.

Com o olhar fixado no chão, retornei à cama dele, imerso em meus pensamentos. Parecia que todos os meus sentidos haviam evaporado. Uma sensação de desesperança impregnava minha alma. Por muitos anos, mantive a esperança de descobrir a verdade e, talvez, reencontrar meus pais de nascimento. Agora, a cruel realidade se impunha: ambos estão mortos.

O ambiente se transformava em um silêncio pesado. O luto escorria pelo pomo de Adão de Leoni, intensificado pela bebida seca. Felicia, com os braços cruzados e sentada na cama, deslocava seu olhar entre mim e ele, ponderando a quem confortar primeiro. Parecia que aquela conversa desvendava as perdas que tínhamos sofrido. Leoni, do irmão amado; e eu, da expectativa de conhecer minha família.

— Cato! — Eu recusei o abraço compassivo de Felicia.

— Me ensine. — Encarei o homem de cabelos ruivos, erguendo a cabeça com determinação, e os lábios firmemente pressionados um contra o outro, revelando a minha fúria. — Me ensine a ser como você.

— Eu não sou um exemplo a ser seguido, garoto. — Ele completou finalmente a golada, esgotando um terço do conteúdo da garrafa. O ruivo posicionou-a sobre o frigobar, removendo sua jaqueta de couro posteriormente. — Mas ele era.

Leoni me passou a jaqueta. Não havia nada fora do comum, exceto pelo aroma de álcool profundamente impregnado no tecido.

— Era dele. — Revelou. — Fique com ela.

Crescendo no orfanato, o único item físico que possuía era um pequeno manto, infelizmente despedaçado por alguns garotos que nutriam ódio por mim. Ademais, o pingente em forma de leão que sempre carregava comigo, servia como meu refúgio seguro. Era a minha ligação mais palpável com a família que um dia tive. Contudo, agora havia um novo item que poderia me aproximar da minha verdadeira origem: a jaqueta.

— E como posso ser como ele? — Indaguei, vestindo a roupa.

Pela primeira vez, o olhar de Leoni se encheu de tristeza. Mas não era uma tristeza dramática, era um olhar nostálgico. Possivelmente, eu o lembrava de meu pai. Aquele objeto que vesti o fizesse recordar dele, disso eu tinha certeza. Seu coração pulsava em batidas fortes e pontuais, em um ritmo bem marcado. O homem controlava suas narinas para não exalar mais ar do que o necessário, algo que eu podia perceber por meio do meu sentido aguçado.

O homem se aproximou, delicadamente posicionou ambas as mãos em minha mandíbula, e mesmo sem um sorriso, era evidente seu orgulho ao ouvir minhas palavras.

— Eu o ajudarei a ser melhor, garoto. — Ele falava com sua testa delicadamente encostada na minha, fazendo a barba roçar no meu queixo. — Mas você precisará ser paciente. E entender uma coisa.

— O quê?

— Você estará mais acostumado a covas do que nunca.

— Isso não é um problema.

— A primeira transformação é a mais fácil, Cato. A próxima será dolorida. Toda a sua estrutura óssea irá mudar. Não é uma tarefa fácil. Muitos homens morreram no caminho.

— Eu consigo suportar.

— Não conseguirá. Você terá que lidar com isso. — Falou sério. — A dor de cada transformação é maior do que a da outra. As transformações para uma anatomia felina são bastante dolorosas para o corpo humano e os rituais não podem ser realizados consecutivamente. Mas, com o tempo, você se acostuma. — Ele soltou meu rosto, sentando-se na cama. — Ademais, não são somente as panteras que lhe caçam e talvez elas sejam o menor dos problemas.

— O que mais está acontecendo, Leoni? — Felicia questionou, enquanto roía a unha do polegar.

— Vocês se lembram da fumaça? — O homem lembrou.

— Foi o que nos salvou. — Falei.

— A bomba de fumaça era feita de Anemônia. Uma flor mística que repele as habilidades dos Gatos Pardos. — O ruivo explicou. — A mesma que eu uso para proteger a entrada desse quarto. É a nossa fraqueza.

— E quem usou? — Perguntei.

— Há caçadores de Gatos Pardos por aí. Eles também buscam pelo sangue da imortalidade. Outros, entretanto, buscam por vingança, já que muitos de nós matamos inocentes ao decorrer dos séculos.

— O que faremos, então?

— Você viverá sua vida normalmente, garoto. Calice e os Irmãos Pantera não os atacarão em público. Eles sabem que podem estar sendo observados pelos caçadores. Eles tentarão te atacar quando estiver sozinho.

— E por que atacaram o circo?

— O alvo era você. O que os motivou a atacar a mulher das serpentes, bem... é desconhecido; ela deve ter tentado se defender e entrou em uma briga, pois eles não derramam sangue inocente, não mais. Não à toa prenderam Felicia e os seus amigos. Eles só querem você.

Escutar as palavras de Leoni foi como remover uma espada cravada em meu peito. Os meus ombros se relaxaram, aliviando-se da tensão que os mantinha rígidos. Agora, pelo menos, eu tinha a certeza de que Felicia, Elliott, Petit, Maya e Alys estariam seguros.

— Agora você irá descansar e amanhã, voltará para sua vida, como se nada tivesse acontecido. Eu estarei por perto, como sempre estive. — Ele deu dois leves toques no meu rosto.— Certo? — Perguntou.

Confirmei com a cabeça.

— Quando for a hora, quando você estiver forte o suficiente, matarei você repetidamente até alcançarmos o máximo nível de poder e, assim, continuaremos. — Ele persistia em me observar com um olhar fraternal.

— Posso confiar em você, garoto? — Indagava.

Apenas concordei com a cabeça, outra vez.

— Leoni... — Eu falei com um sussurro suave.

Apesar de toda a discussão sobre minha família ter sido reveladora, ainda era bastante imprecisa. Eu não podia apenas aceitar palavras vazias, precisava de algo tátil, algo que eu pudesse tocar. No processo de luto, a simples notícia do falecimento, não é suficiente; existe a necessidade de ver o corpo. Era isso que eu precisava no momento: um corpo.

— Diga.

— Você tem alguma foto deles? — Pedi.

— Eu não tenho, Cato. Você tem.

— Como?

Ele fez um sutil gesto em direção ao meu pingente, tocando-o delicadamente com a ponta dos dedos. Observei uma pequena trinca que nunca havia notado antes e, dentro dela, a imagem dos meus pais. Minha mãe, uma jovem mulher de cabelos negros e curtos, tinha um sorriso radiante em seu rosto. Meu pai, por outro lado, exibia cabelos tão brancos quanto os meus, que caíam até a altura dos ombros. Eles sempre estiveram presentes comigo, todo o tempo.

Gatos Pardos - Leão Branco: Ascensão FelinaOnde histórias criam vida. Descubra agora