VI - Casa da Irmandade da Misericórdia

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13 de março de 1908 - São Luís do Maranhão

Tereza acende uma vela e ajoelhada aos pés da cama desfia o rosário; os primeiros raios matutinos entram pela janela aberta, a brisa fresca da manhã areja o quarto e o chilrear dos inúmeros pássaros que voejam do lado de fora alegram seu coração, apesar da data marcada por tristeza. Fazem seis anos desde o massacre de Alto Alegre, coloca a alma de todos que pereceram em suas orações.

O luto pela perda da amiga foi substituído por uma nostalgia cansada. Não chora mais, acredita que a alma de Hulda repousa em paz; o mesmo não pode ser dito dos Guajajaras e outros povos indígenas, que seguem sendo caçados, dispersos e presos, especialmente pelos conflitos de terra que se intensificaram nos últimos anos. Incluiu Maria da Conceição na intenção da última dezena; no dia anterior visitou o orfanato, a criança, então com sete anos, estava com os pés enfaixados recendendo a andiroba e copaíba.

As outras crianças apelidaram Conceição de "Pés de Sapo" e o que antes era visto como uma parte normal de si mesma, se tornou algo a ser escondido. Andava sempre com sapatos fechados, mesmo quando esses estavam pequenos demais para ela; os recursos parcos do orfanato não permitiam que trocassem de calçado sempre que necessário.

As órfãs recebiam calçados dois ou três números maiores que o seu e usavam enquanto fosse possível; quando não estavam em aula ou em alguma atividade institucional ficavam livres para andar descalças ou de alpercatas. Os pés de conceição eram largos e mesmo os tamanhos maiores acabavam machucando, mas ela usava-os mesmo assim, com receio de que seus pés fossem vistos e as chacotas recomeçassem.

O desconforto e a dor tornavam o andar de Conceição claudicante e levemente bamboleante, o que rendia imitações na escola e entre seus pares. Durante o banho não conseguia higienizar os pés, pois se recusava a olhá-los. Tocá-los estava fora de cogitação. Enxugava-os rapidamente e enfiava nas meias de algodão, temerosa de que alguém visse.

Com o passar do tempo, o cheiro rançoso de suor, sujeira e umidade impregnou-se de tal forma em Conceição, que não precisava fazer nenhum esforço para que os demais ficassem longe. Seu odor servia como uma redoma de proteção, mas não percebia que estava sufocando dentro do refúgio que criou.

Após alguns meses seus pés foram tomados por uma coceira intensa, ardiam durante o banho e estavam inchados e marcados por feridas vermelhas e secretivas. Não pediu ajuda, mas as irmãs perceberam que algo estava errado e forçaram-na a tirar os sapatos. O algodão das meias estava grudado nos ferimentos com pus; foi preciso umedecer o tecido com água morna para que se soltassem. A camada de pele que unia os dedos estava em carne viva.

Na ânsia de se proteger acabou desenvolvendo um fungo.

No orfanato, Tereza encontrou Conceição no quarto que era compartilhado com as outras crianças. No momento elas estavam do lado de fora se divertindo e vivendo enquanto ainda tinham infância. Conceição estava deitada na cama estreita. As risadas vindas de fora ecoavam pelas paredes frias de cor sépia e martelavam sua cabeça e coração como algo que não poderia ter.

A irmã sentou-se ao lado da menina, acariciando os cabelos lisos e brilhosos de Conceição, que, exceto pelo tom de pele levemente mais claro, era uma réplica perfeita da mãe. Tereza ia ralhar com ela, mas calou-se diante do brilho das lágrimas que mal podiam ser vistas no ambiente escuro e abafado.

— Irmã, foi por causa disso que minha mãe me abandonou? — Conceição indagou baixinho, formulando em voz alta a dúvida que há tempos lhe aterrorizava.

A órfã acreditava que tinha chegado ao orfanato pela roda dos expostos, assim como a maioria das outras meninas.

— Tu não fostes abandonada, de onde tirastes essa ideia? — Tereza, anteriormente, fez opção de não revelar o passado de Do Carmo.

A mulher de Pés de SapoOnde histórias criam vida. Descubra agora