9 - juntas

577 95 40
                                    

— POV: Cecília

     Só acordo Selena quando já está amanhecendo. O cansaço já está martelando na minha cabeça a muito tempo, mas eu não consegui interromper o sono dela. Depois que Selena briga comigo por não ter seguido nosso acordo, consigo dormir algumas horas antes de seguirmos nosso caminho - para onde? Não fazemos ideia.

     Ando alguns centímetros atrás de Selena, tanto porque minha perna ainda está prejudicada quanto porque eu quero ficar olhando para o cabelo dela. Selena é linda com cabelo preto, mas o rosa faz ela se destacar ainda mais.

     Atirando em alguns zumbis e agradecendo por termos silenciadores, dou de cara com uma bicicleta. Mais do que nunca, bate saudade do Tomate. Quase todos os dias eu penso em como ele está, se ele sente muito a nossa falta, o que ele faria se estivesse aqui... e, nos últimos dias, tenho ponderado sobre o que ele acharia disso que está rolando entre Selena e eu.

     Tomate já havia percebido que havia algo diferente na minha relação com a Selena. Apesar de confiar muito nele, ainda é difícil falar sobre os meus sentimentos, ainda mais quando nem eu mesma sei o que eu sinto. Mas ele é o meu melhor amigo. De alguma forma, Tomate sabia.

     Acho que ele ficaria feliz com o beijo. Os beijos. Talvez ele até me ajudasse a surtar menos. Selena conversaria com ele? Possivelmente. Nossa, eu sinto muito falta do nosso triozinho.

- Cecília? — Escuto Selena me chamar, impaciente. Não deve ser a primeira vez que ela faz isso.

- Desculpa- eu... tava pensando — Eu falo e olho uma última vez para a bicicleta caída.

     Por instinto, me aproximo para ver se ela está funcionando. O guidão não está firme e um dos pneus está furado. Algo que poderia ser reparado em dias comuns, em uma época em que ainda existiam celulares para chamar mecânicos.

     Largo a bicicleta e sigo Selena, que oferece um olhar de consolo antes de continuarmos andando. Acho que ela sente tanta falta dele quanto eu.

     Andamos por cerca de meia hora (ou mais) até que zumbis começam a aparecer com mais frequência. Além disso, a atmosfera do lugar está diferente. Os estabelecimentos parecem mais acabados, tem mais lixo e gosma das criaturas nas ruas... tem algo de errado.

     Minha memória nunca foi muito boa, mas eu tenho um talento especial para observar. E eu observei o gps do carro por tempo suficiente para lembrar que o local onde estamos - provavelmente perto de Paleto - era um dos que estavam marcados de vermelho. Um dos pontos onde mais zumbis se concentram.

- Selena, a gente precisa- — Eu começo a falar e sou interrompida por um estrondo alto vindo do beco na nossa diagonal.

Um grupo de cinco zumbis derrubaram a grade que estava bloqueando a passagem. Como já estávamos com as armas preparadas, conseguimos dar uns passos para trás e derruba-los antes que nos alcancem. "O perigo passou", eu poderia pensar. Só que em uma área cheia de zumbis, sons altos não são recomendados. Os silenciadores ajudaram, mas de qualquer forma as coisas fizeram barulho antes e ao morrer.

Quando me viro para falar com Selena, ela já está mirando em mais dois zumbis do outro lado da rua. Consigo ver uma criatura caindo de uma janela e levantando-se para vir até nós, junto com vários outros vindo de todas as direções.

Sem tempo para matar cada um, Selena fala para atirar o suficiente para deixa-los no mínimo atordoados para que possamos correr. Faço exatamente o que ela diz mas, na hora de fugir, percebo que minha perna ainda me afeta bastante.

Selena tenta me ajudar a ir mais rápido, mas nesse ritmo nós vamos ser pegas facilmente.

- Vai na frente, eu dou um jeito — Eu falo, me virando para atirar em um zumbi que cai logo nos nossos pés.

- Você é doida se pensa que eu vou te deixar aqui — Ela fala e sobe no carro na nossa frente para pegar um visual melhor — Estamos nessa juntas.

A assertividade de sua voz me deixa mais confiante e segura de que Selena se importa comigo e que nós conseguimos fazer isso. Juntas.

Com esforço, consigo subir no carro e atirar junto com ela. Deitamos metade deles, o que é bom, mas ainda continuamos cercadas dessas coisas e eu só tenho mais um pente.

Selena diz que vai para outro carro e, quando faz o salto, vejo o teto do veículo ceder, fazendo Selena ir de encontro com o chão.

- Selena! — Eu chamo e desço para ir até ela, sem parar de atirar nem por um segundo.

Fico feliz ao ver ela se levantando e recarregando a arma. A maior prova de que Selena está bem é ver que ela continua com sua mira impecável e sua determinação de acabar com essas coisas nojentas.

Me distraio com Selena por menos de dez segundos, mas é o suficiente para que eu sinta duas mãos me agarrando pelas costas. Eu grito e uso toda minha força para jogar o zumbi contra o carro, apontando a arma para ele em seguida. Sem conseguir me recuperar rápido o suficiente, caio no chão e vejo a coisa investir contra mim. Só que ela não chega.

Vejo Selena puxar o zumbi de cima de mim e joga-lo longe, metralhando ele em seguida. Fico de joelhos e consigo pegar minha arma para atirar nos outros que estão nos cercando. Nesse processo, avisto uma moto em incrivelmente boas condições. Algum explorador deve ter largado ela aqui.

Certifico que Selena está sob controle da situação e corro o mais rápido que posso, subindo na moto e agradecendo aos céus por ainda ter gasolina. Dirijo até Selena, sentindo uma mão arranhar meu braço no caminho, e consigo atropelar um zumbi antes que ele ataque ela.

- Rápido, sobe! — Eu grito e ela obedece.

Só sossego quando já estamos longe de Paleto, em uma área cheia de mato, pobre em construções. Minha perna está me matando, mas pelo menos estamos bem. Abandonamos a moto, cuja gasolina só deve ser suficiente para mais um quilômetro, no máximo, e paramos para respirar.

- Você tá bem? — Selena pergunta, me olhando com preocupação.

- Tô sim, e você? — Eu pergunto e ela assente, apertando as costelas — Tá mesmo?

- Acho que me machuquei quando caí, mas nada que não dê pra aguentar — Ela fala e observa ao redor — Vamos ali.

Sigo Selena até uma caminhonete velha, mas razoavelmente conservada. Ela me ajuda a subir na parte de trás e nos sentamos, aproveitando o momento de paz que conquistamos. Mal anoiteceu, mas sei que estamos ambas exaustas.

Passamos os minutos seguintes cuidando de nossos ferimentos e comendo um pouco do que temos nas mochilas. Quando já estamos relaxadas - o máximo que alguém pode estar em uma ocasião como essa, pelo menos - sinto a mão de Selena apertar a minha.

- Dia e tanto — Ela fala, mas reconheço que são palavras rasas apenas para quebrar o silêncio.

Seu foco está no meu rosto. No começo nos meus olhos, mas logo seu olhar se desvia para a minha boca. Eu sorrio e coloco as mãos em volta da sua cintura, tomando cuidado para evitar o local machucado.

Selena sorri de volta, fitando novamente meus olhos e me dando um selinho antes de sentar no meu colo. Não consigo deixar de notar como ela também faz o ato cuidadosamente, verificando se não estou sentindo dor.

Aperto sua cintura para garantir que estou bem e ela coloca suas mãos no meu pescoço, logo em seguida fechando os olhos e eu sinto seus lábios nos meus. É o beijo mais íntimo que tivemos até então, e é muito, muito bom.

Acabamos de quase morrer para zumbis e, mesmo assim, penso que poderia ser muito pior. No fim das contas, eu tenho a Selena. E aparentemente como mais do que só minha amiga e parte da minha gangue.

Um bom tempo depois, quando estamos deitadas para dormir, Selena com o braço em volta do meu corpo e a cabeça apoiada no meu ombro enquanto usa uma mão livre para acariciar meu braço, o pensamento que tive mais cedo volta à minha cabeça: Nós conseguimos fazer isso.

     Juntas.

__________________________________
OBSERVAÇÕES

Quase morreram, mas pelo menos se pegaram, né? Uma vitória é uma vitória.

em meio ao caos - cecilenaOnde histórias criam vida. Descubra agora