Maria Eduarda
Meus olhos acompanham, hipnotizados, o rastro de espuma que as pernas de Saulo criam à medida que ele avança, veloz, pela piscina olímpica do clube.
Ah, como queria saber nadar assim!
Queria poder nadar assim.
Olho por sobre os ombros. Papai está me encarando, sentado sob o guarda-sol, como se estudasse a anatomia de um inseto asqueroso.
Ele me odeia. Posso não ter maturidade suficiente para compreender algumas coisas aos meus dezessete anos, mas tenho certeza de que o amor não é uma sucessão de xingamentos, apertões dolorosos, tapas no pé do ouvido, surras de cinto.
Balanço a cabeça, como se esse ato pudesse expulsar as memórias da violência que Oscar Berlamino exerce contra mim.
Busco a presença de mamãe. Ela está conversando com Amália, mãe de Saulo e de Samila. Seus ombros estão caídos; e aposto que está incluindo o marido na conversa sempre que possível, temendo desagradá-lo.
Minha mãe morre de medo do meu pai. Não que ele a agrida fisicamente (como faz comigo). O problema é que ela enxerga esse casamento como uma espécie de salvação de um destino mais cruel: a solidão e o desamparo. Cora Belarmino é órfã, se casou grávida aos dezoito anos, não tem profissão e nunca trabalhou fora.
Esse passeio em família é um acontecimento raro. A família Berlamino não costuma socializar com outras famílias; nem mesmo com nossos vizinhos, como são os Villanovas.
"Trabalho muito; como juiz de direito, devo me assegurar de que a sociedade está caminhando em ordem, com todos os cidadãos cumprindo devidamente as leis" - justifica papai quando é convidado para algum evento. "Minha esposa e minha filha são caipiras; elas têm vergonha de tudo, não gostam de sair sem mim" - acrescenta, caso a pessoa sugira que eu e mamãe poderíamos ir sem ele.
- Por que você ainda está aí, Duda? Fiquei te esperando um tempão no vestiário. Vá logo pôr o biquíni pra gente entrar na piscina. Eu já tô com o meu!
Longos cabelos dourados entram no meu campo de visão. Samila me puxa pelo braço; eu me encolho por instinto. Não gosto que me toquem de surpresa. Acho que não gosto de toques de jeito nenhum. Suave ou brusco, não faz diferença; todos eles me remetem à agressividade. As marcas que meu pai deixa no meu corpo podem desaparecer com o passar dos dias; mas elas jamais se apagam da minha alma.
- Eu não vou entrar na piscina, Sami.
- Puxa, por que, amiga? A gente nunca vem ao clube juntas. Pensei que você estivesse animada pra aproveitar o dia. - Seus olhos azuis-escuros, idênticos aos do irmão, encobrem-se pela névoa de decepção.
Sami é minha melhor amiga. Minha única amiga. Tenho várias colegas no colégio particular onde nós duas estudamos, mas, propositalmente, não aprofundo a amizade com nenhuma delas. Não faz sentido ter um milhão de amigos se meu pai não me deixa sair da porta de casa sem ele.
- Estou... naqueles dias - minto. Não tem como ela saber que não estou menstruada. Fiquei mocinha tardiamente; faz menos de três anos. Minha menstruação não vem em intervalos regulares. E não posso falar a verdade. Ela não pode saber que o motivo pelo qual não colocarei um biquíni é: minhas costas estão cheias de vergões; papai me bateu ontem à noite com o cinto que estava em sua calça, apenas porque o confrontei quando ele chamou a esposa de burra.
- Ai, que chato, Duda. - Ela esfrega meu braço, num gesto solidário. Eu retenho o ímpeto de me encolher novamente. - Também não vou entrar, então. Vou te fazer companhia.
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Marcas do Passado [DEGUSTAÇÃO]
RomanceNa adolescência, Maria Eduarda tinha um amor platônico por Saulo, irmão mais velho de sua melhor amiga e nadador olímpico. Assistir ao desempenho do rapaz na piscina e receber seu tratamento gentil ajudavam Duda a esquecer, por alguns momentos, a vi...