Capítulo IV

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Enquanto finalmente juntava minhas coisas, uma sensação de libertação misturada com ansiedade preenchia cada fibra do meu ser. Após tantos anos de confinamento e sombras, eu estava prestes a ver as ruas novamente, sentir o ar fresco no rosto e contemplar a lua. Ah, a lua... Nunca compreendi totalmente meu fascínio por ela. Algo em sua luz prateada e serena sempre me atraiu, como se guardasse segredos perdidos do meu passado.

Meus pensamentos vagavam pelas profundezas da minha memória, tentando recuperar fragmentos do que um dia fui. Havia buracos na minha mente, lacunas que se recusavam a ser preenchidas. Talvez os traumas tivessem corroído minhas lembranças, apagando qualquer vestígio de felicidade que um dia conheci. Tudo o que restava eram lembranças de dor, humilhação e da desobediência que me trouxe a este inferno.

A imagem dela surgia como um espectro no meu pensamento, a figura da pessoa a quem desobedeci. Não consigo recordar seu rosto com clareza, mas a sensação de desapontamento e ira em seus olhos está gravada em minha alma. Sei que a desobedeci, que quebrei a confiança de quem me deu abrigo. O que fiz exatamente permanece um mistério, mas o peso da culpa e da vergonha é um fardo constante.

Enquanto arrumava minhas poucas posses, o coração batia descompassado. A expectativa de ver o mundo além das paredes que me aprisionaram por tanto tempo era intoxicante, mas o medo do desconhecido também pairava como uma nuvem negra. Eu ansiava pela liberdade, mas sabia que ela vinha com seus próprios desafios e perigos.

Levantei os olhos para o pequeno vislumbre do céu noturno visível pela janela, sentindo uma conexão inexplicável com a lua. Ela parecia olhar para mim com compaixão, talvez entendendo a dor e a esperança que se mesclavam em meu coração.

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Ao fim da tarde, quando as sombras começavam a se alongar, finalmente cheguei à imponente mansão dos Harper. O internato onde passei tantos anos era isolado da cidade, um lugar onde o tempo parecia ter parado, e agora, diante das grandiosas paredes da mansão, sentia uma mistura de ansiedade e expectativa. Ao me aproximar, a estrutura parecia ainda maior, com suas torres altivas e jardins bem cuidados, tudo exalando uma aura de poder e tradição.

Minha primeira tarefa foi me apresentar ao capitão da guarda do governador, Apolo Belyk. Ele me recebeu com um sorriso singelo, um gesto inesperado para alguém com uma aparência tão ameaçadora e fria. Seu rosto parcialmente coberto e seu olhar penetrante sugeriam uma personalidade dura, mas aquele sorriso contradizia a imagem que ele projetava. Talvez houvesse mais nele do que aparentava, pensei, tentando decifrar o enigma daquele homem.

Após a breve apresentação, Apolo me conduziu por um tour pela mansão, apresentando-me aos outros guardas e aos serviçais com quem inevitavelmente cruzaria. A atmosfera era de respeito e formalidade, mas também de uma curiosa gentileza. Todos me trataram bem, com uma cordialidade que parecia, por vezes, exagerada. Senti-me um pouco desconfortável, como se estivesse pisando em terreno instável, incapaz de discernir a autenticidade nas palavras e gestos daqueles ao meu redor.


Os aposentos que me foram designados eram modestos, mas confortáveis, um alívio depois das condições espartanas do internato. Enquanto desfazia minha bagagem, não pude deixar de refletir sobre o contraste entre a minha nova vida e o passado que ainda me assombrava. O luxo da mansão, a aparente gentileza dos outros guardas, tudo parecia um mundo à parte do sofrimento e da humilhação que eu conhecera.

Enquanto a noite caía e a mansão se silenciava, sentei-me à janela, olhando para a lua que agora brilhava no céu. Sua luz prateada banhava os jardins, conferindo-lhes uma beleza etérea. O fascínio que sentia pela lua persistia, uma constante em meio à turbulência da minha vida. Talvez, de alguma forma, ela simbolizasse a esperança de que, mesmo nas trevas, ainda houvesse uma luz capaz de iluminar o caminho.

Entre sombras e LembrançasOnde histórias criam vida. Descubra agora