Capítulo 01

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Maria Luiza.

O sol nascia lentamente sobre o morro do Vidigal, pintando o céu com tons de laranja e rosa. O dia prometia ser quente, e a brisa da manhã era um alívio temporário. Malu olhava pela janela do quarto, contemplando a vista que conhecia tão bem. As ruas estreitas do morro, as casas empilhadas umas sobre as outras, a igreja no topo, onde seu pai pregava fervorosamente todos os domingos. Aquela era sua vida, seu refúgio, seu mundo.

- Malu, vamos? - a voz de sua amiga Thayla ecoou pela casa.

Malu se afastou da janela e pegou sua mochila. Era sábado, e elas se preparavam para mais uma ação social da igreja, distribuindo cestas básicas para as famílias da comunidade. O pai de Malu, Pastor Elias, sempre dizia que ajudar o próximo era a maior demonstração de fé. E ela acreditava nisso.

As duas desceram as escadas rapidamente, encontrando o pequeno grupo já reunido em frente à igreja. Enquanto colocavam as cestas no caminhão, Malu observava a movimentação ao redor. Moradores indo e vindo, o cheiro forte de café da manhã no ar, crianças correndo. Era uma rotina que ela conhecia bem, mas, nos últimos meses, algo dentro de si havia mudado. Ela sentia um certo incômodo, uma inquietação que não sabia nomear. Talvez fosse a convivência com Thayla e sua irmã, Thatyane, as gêmeas de personalidades tão diferentes.

- Vamos dividir os grupos - anunciou o Pastor Elias, interrompendo os pensamentos de Malu. - Eu vou com o João e a Marta. Malu, você vai com a Thayla e Thaty para a parte alta do morro.

As irmãs se entreolharam e riram. Thatyane, com seu jeito despojado e despreocupado, ajeitou o cabelo enquanto olhava ao redor, como se estivesse à procura de algum tipo de emoção. Ao contrário de Thayla, que sempre tentava manter a discrição, Thatyane era conhecida por sua energia vibrante e por ser fã de festas.

- Vamos lá, Malu! Quem sabe encontramos algo interessante por aí - disse Thaty, piscando para a amiga com um sorriso travesso.

- Só estamos aqui para ajudar - respondeu Malu, sem esconder o nervosismo, já antecipando o que Thaty poderia estar planejando.

O grupo começou a caminhar pelas vielas, entregando as cestas e oferecendo palavras de conforto e oração. Malu se perdia em pensamentos, até que Thayla puxou conversa.

- Você nunca veio nessa parte do morro, né? - perguntou a amiga, apontando para as casas mais afastadas, onde a comunidade se tornava mais densa e o clima mais tenso.

- Não, meu pai prefere que a gente fique na parte mais segura - respondeu Malu, olhando ao redor com um misto de curiosidade e receio.

- Faz sentido. Mas, acredite, aqui também tem muita gente boa. - Thayla sorriu de lado, sempre tentando mostrar o lado positivo do lugar onde cresceu.

Thatyane, por outro lado, interrompeu com uma risada baixa.

- Boa? Depende do que você chama de bom. Esse morro é um campo minado. Um deslize e... - ela fez um gesto dramático com as mãos, como se explodisse.

Malu engoliu em seco, não sabia até que ponto Thaty estava brincando ou falando sério. Mas, ao mesmo tempo, havia algo no jeito despreocupado dela que a fazia sorrir, mesmo em momentos de tensão.

- Que bom que estamos aqui apenas para fazer o bem, então - respondeu Malu, tentando manter o foco.

- Quem sabe a gente não encontra o Caveira, hein, Malu? - Thaty provocou, com um brilho malicioso nos olhos.

Malu ficou vermelha instantaneamente. Ela já tinha ouvido falar de Thiago, ou melhor, de Caveira. As histórias sobre ele circulavam pela igreja, carregadas de medo e respeito. Ele comandava o morro, e ninguém ousava desafiá-lo. Até o próprio pai de Malu alertava constantemente sobre o perigo que ele representava.

Antes que alguém pudesse responder, o som de tiros ecoou pelas vielas. O ar ficou pesado de repente, e todos congelaram. O barulho vinha de perto, e em poucos segundos, gritos se espalharam. O grupo da igreja se agachou instintivamente, procurando abrigo.

- Fiquem abaixados! - gritou um dos voluntários, guiando todos para trás de um muro.

O coração de Malu disparava. Ela havia crescido no morro, mas sempre foi protegida das situações mais perigosas. Essa era a primeira vez que se via tão próxima de um tiroteio. Sua mente estava em pânico, mas sua fé a impelia a orar silenciosamente.

Foi então que ela sentiu uma mão firme em seu ombro.

- Você tá bem? - perguntou uma voz masculina.

Malu olhou para cima, encontrando o olhar sério de um homem alto, vestido de preto. Ele tinha uma expressão endurecida, mas havia algo em seus olhos que transparecia cuidado. Malu reconheceu imediatamente quem ele era.

- Caveira... - murmurou, ainda sem acreditar que o homem à sua frente era o mesmo que comandava o morro com mão de ferro.

- Saiam daqui, agora. - Caveira não esperou uma resposta. Ele a puxou com firmeza, guiando-a pelas vielas enquanto o som dos tiros ainda ecoava. Thayla e Thaty corriam ao lado, pálidas, mas cada uma reagindo de forma diferente. Thayla estava visivelmente assustada, enquanto Thaty parecia mais animada do que assustada, como se estivesse vivendo uma aventura.

- Ei, Thiago, você tá assustando nossa amiga! - Thaty gritou, sem perder o humor, mesmo no meio do caos. Ela sempre conseguia levar as coisas de forma leve, mesmo nas situações mais tensas.

- Isso não é brincadeira, Thatyane! - Caveira rebateu, sem diminuir o passo.

O grupo se dispersou rapidamente, e em questão de minutos, Malu, Thayla e Thaty se viram em um lugar mais seguro, escondidas entre paredes de tijolos e becos estreitos. O tiroteio ainda continuava ao longe, mas ali, naquele momento, elas estavam a salvo.

- O que vocês estavam fazendo tão perto do fogo cruzado? - perguntou, cruzando os braços enquanto olhava para Malu com um misto de preocupação e irritação.

Malu, ainda tentando recuperar o fôlego, não sabia o que responder. Sentia o calor do momento, a adrenalina ainda correndo em suas veias, e, pela primeira vez, seus olhos estavam diretamente nos de Thiago. O temido Caveira. O homem que ela tinha prometido a si mesma nunca se aproximar.

Mas, ao invés de medo, sentiu algo completamente diferente. Algo que ela não deveria sentir.

- Eu... eu estava ajudando com as cestas da igreja - respondeu, a voz saindo mais fraca do que gostaria.

Ele a observou por um momento, seus olhos analisando cada detalhe de Malu. Finalmente, ele balançou a cabeça, um sorriso breve e quase imperceptível surgindo em seus lábios.

- Você é diferente - murmurou ele, antes de se virar. - Vai pra casa, Malu. Isso aqui não é lugar pra você.

Thatyane, que observava tudo com um olhar astuto, riu baixinho.

- Parece que o Caveira tem um lado cavalheiro, hein?

- Thaty! - Thayla repreendeu a irmã, dando-lhe um empurrão de leve, mas não pôde deixar de sorrir. Malu, por outro lado, estava em choque, seus pensamentos confusos, enquanto assistia Thiago desaparecer na escuridão do beco.

Aquele breve encontro tinha sido o suficiente para abalar seu mundo e deixar seu coração batendo mais rápido. E, pela primeira vez, Malu se perguntava o que Deus diria sobre o que estava sentindo.

🤍Continua?¿

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