CAPÍTULO 3 - NIC

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A maioria das pessoas que vêm ao Centro de Atenção Psicossocial num sábado está lidando com questões muito sérias. Hoje, estou sentada diante de uma dessas pessoas. Thays, de 16 anos, é uma garota que parece carregar o peso do mundo em seus ombros frágeis. Seu rosto visivelmente cansado sugere que não dorme bem há dias, e sua magreza é preocupante, um provável reflexo de um transtorno alimentar decorrente da depressão.
Ela fala com a voz baixa, quase apagada, enquanto me conta sobre sua relação com o pai, que facilmente se enquadra no que a lei descreve como cárcere privado.
— Eu só estou tão cansada de viver minha vida em função do que meus pais querem. De não poder sair, de não poder viver. — Ela passa a mão pelas cicatrizes no pulso, claramente autoinfligidas. — Vejo minhas amigas saindo, vivendo suas vidas, e é vergonhoso ter que pedir permissão para tudo.
Olho para ela com um olhar encorajador, incentivando-a a continuar. Nesses momentos, sei que o mais importante é ouvir, permitir que a dor que ela carrega encontre um espaço seguro para se manifestar.
— Ultimamente, tenho pensado bastante em fugir, ou em me machucar. Qualquer coisa seria melhor do que viver desse jeito. — Uma lágrima solitária escorre por seu rosto, e ela abaixa a cabeça, como se estivesse tentando se esconder do mundo.
Quando as pessoas chegam aqui, o primeiro passo é sempre o acolhimento. Precisamos entender onde vamos encaixá-las, avaliar o nível de perigo que representam para si mesmas ou para os outros, e determinar a melhor abordagem para o tratamento. Mas, acima de tudo, nesse primeiro contato, o mais importante é escutar. A garota à minha frente exibe nos olhos um certo nível de desespero que é impossível ignorar, e as cicatrizes abertas em seus pulsos me fazem considerar seriamente o risco que ela representa para si mesma, mesmo que ainda não tenha mencionado a palavra suicídio.
Thays respira fundo, tentando encontrar as palavras enquanto eu anoto alguns pontos em seu prontuário. Sei que é crucial registrar suas falas e observações iniciais, especialmente quando há sinais evidentes de risco à vida.
— Thays, o que você me disse é muito importante, — digo, mantendo o tom firme, mas acolhedor. — Agora, precisamos pensar nos próximos passos para garantir sua segurança e ajudá-la a se sentir melhor.
Ela me olha com olhos assustados, quase esperando uma reprimenda. Mas eu continuo com o mesmo tom tranquilizador.
— Primeiro, gostaria de pedir que você se encontre com um dos nossos psiquiatras ainda hoje. Ele vai avaliar sua situação e conversar com você sobre como podemos ajudar a estabilizar suas emoções e te proteger. Pode ser difícil, mas é um passo importante.
Vejo que ela hesita, mas há uma pequena fagulha de aceitação em seus olhos. Sinto que é essencial continuar reforçando a necessidade de apoio sem pressioná-la.
— Além disso, Thays, gostaria que pensássemos juntas em um plano para os próximos dias. Algo que possa te dar um pouco mais de controle sobre a sua vida. — Digo, abrindo espaço para que ela participe da construção do seu Plano Terapêutico Singular. — O que você acha que poderia te ajudar? Talvez frequentar um grupo de apoio, ou até mesmo conversar com alguém que passou por algo semelhante?
Ela hesita, os olhos fugindo dos meus, mas finalmente responde.
— Eu... eu acho que conversar com outras pessoas poderia ajudar... eu não sei se estou pronta para um grupo, mas talvez... conversar com alguém, de forma mais individual…
Eu assinto, satisfeita com a abertura dela.
— Isso é ótimo, Thays. Podemos começar com um atendimento individual mais frequente, e depois, se você se sentir confortável, podemos tentar o grupo. É importante que você vá no seu próprio ritmo.
Vejo que ela relaxa um pouco, como se a ideia de ter algum controle sobre o processo fosse um alívio. A conversa continua, e faço anotações sobre o que discutimos, incluindo a necessidade de um encaminhamento para um nutricionista, considerando sua magreza preocupante.
— Uma última coisa, Thays, — acrescento, com suavidade. — Vou sugerir que você se encontre com um nutricionista aqui no CAPS. Ele pode te ajudar com sua alimentação, para que você se sinta mais forte física e emocionalmente. Isso faz parte do cuidado que queremos te oferecer.
Ela balança a cabeça em sinal de concordância. Sei que o caminho à frente será longo, mas hoje demos o primeiro passo. O mais importante é que Thays se sinta apoiada, não apenas como paciente, mas como uma jovem que merece uma vida plena. Entrego seus encaminhamentos e nos despedimos.
Pego meu celular para ver as horas: 10:05. Eva provavelmente já está no avião a caminho da casa de Isis. Meu voo sai hoje às 18:00, e como a distância entre São Paulo e Rio de Janeiro é curta, provavelmente serei a primeira a chegar. Isso é ótimo, pois acredito que Isis não está muito bem. Ela tem agido de forma estranha desde a última vez que a vi, sempre esquiva e calada. Só espero que isso não tenha nada a ver com o Miguel. Decido mandar uma mensagem para ela
Nic: eai, como está o dia de folga?
Isis: na verdade precisei vir trabalhar, caso complicado. Você está atendendo hoje?
Nic: sim, vou sair daqui umas 16:30
Isis: seu voo é que hora mesmo?
Nic: 18:00, vou chegar antes das meninas
Isis: quando pousar me avisa que te busco, não sei que horas vou sair da delegacia hoje, mas ter uma visita pra buscar no aeroporto é uma desculpa perfeita pra não ficar presa aqui o resto do dia
Nic: combinado.
Nic: Isis, você ta bem? minha intuição está dizendo que tem algo errado, e você sabe que ela não costuma errar
Isis: Quando você chegar, conversamos. Agora, temos que trabalhar. Te vejo mais tarde?
Nic: beleza
Isis: amo você
Nic: amo você
A barra indica que ela não está mais online. Não sei o que minha amiga pode estar passando nesse momento, mas espero conseguir ajudá-la quando ela me contar.
Passo o restante da manhã focada nos próximos acolhimentos: um adolescente com problemas de raiva, uma idosa com depressão causada pela ausência da família, um homem lutando contra o vício em drogas, e uma garotinha que ficou muda de uma hora para outra, provavelmente devido a um trauma grave.
Quando percebo, já é hora do almoço. Meu telefone apita com uma mensagem de Alessandro, me chamando para almoçar em um restaurante a duas quadras daqui. Bato meu ponto e vou encontrá-lo
Alessandro é um dos meus melhores amigos. Ele sempre esteve ao meu lado nas fases mais difíceis, e foi ele quem me ajudou a conseguir este estágio — ser amiga do chefe tem suas vantagens. Quando chego do lado de fora, ele me recebe com um sorriso caloroso. Seus longos cabelos balançam ao vento; ele está vestido todo de preto, segurando uma jaqueta de couro no braço esquerdo e um capacete reserva no braço direito.
— Vamos? — ele diz, enquanto me aproximo e o abraço.

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