Capítulo 2 - Eu sou um garoto, Leone, as circunstâncias me fizeram homem

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"Raro mesmo é tu ser humilde quando o poder tá em porte teu

Procurar o erro nas pessoas quando o errado mesmo sou eu

Me senti o dono do mundo e todo mundo me fodeu"

O Que Separa os Homens dos Meninos - Sant

Rafael Nascimento

Eu queria voltar a ser criança, era o que eu pensava toda vez que me olhava no espelho ao escovar os dentes, mas eu não lembro muito da minha infância, as memórias se dissiparam na disputa do divórcio. Minha mãe ficou com os álbuns de fotos, a minha guarda e a louça que ganharam no casamento, meu pai ficou com a assinatura da SKY, as marcações de altura no batente da porta e a presença nos meus campeonatos de judô, eu fiquei com traumas, duas festas de aniversário e o medo de não ser alguém na vida. Na verdade, tenho medo de não estar no comando da minha própria vida.

Psicólogos afirmam que aos cinco anos de idade formamos nosso caráter com base no que escutamos dentro de casa e na escola, eu cresci ouvindo minha mãe reclamar sobre a ausência do meu pai e a clara preferência dele pelo trabalho; ouvi meu padrasto, Diogo Fraga, chamar meu pai de terrorista mais vezes do que consigo contar nos dedos da mão. Na rua meu pai era um herói, todos os meus amiguinhos queriam ser como ele, mas dentro de casa meu pai era considerado um inimigo.

A minha relação com meu pai é... complicada. Por mais que eu não deixe o juízo de valor do Fraga e da minha mãe afetarem a forma como eu vejo o meu pai, ainda é difícil saber que ele estava envolvido na morte de pessoas com quase a minha idade. Meu pai não era um homem ruim, só estava no trabalho errado. O Fraga também não era um anjo de candura, afinal quem se envolve intimamente com bandidos, defendendo com afinco a não criminalização deles é, no mínimo, alguém com um caráter questionável. Eu nunca abri a boca para questionar meu pai, e por comodismo também não criticava meu padrasto.

A verdade é que eu vivia em uma sinuca de bico, e eu estava de saco cheio dessa situação, mas já estava na hora de eu dar um basta nessa fase da minha vida. Não ia demorar muito para eu me mudar para Niterói para cursar Educação Física na UFF e todos esses problemas vão magicamente desaparecer, eu não vou ter que lidar com a minha mãe e o Fraga, vou estar bem longe dos fantasmas das operações do meu pai. E ainda vou pegar ondas iradas em Itacoatiara, só vitórias, mas ainda faltam seis meses para eu tomar posse da minha vaga, e esses meses ociosos estavam me matando.

Eu passava o dia inteiro jogando videogame, ou surfando, ou fazendo biscuit (mesmo que todos eles fiquem péssimos pois sou a pessoa menos delicada da Terra), ou deitado ouvindo música imaginando meu futuro. A última opção sempre terminava comigo chorando ouvindo alguma música do Roberto Carlos, mas ninguém precisa saber disso. A verdade é que minha vida precisava de uma reviravolta digna de série da Netflix, mas não aquelas que são canceladas depois da segunda temporada, uma série boa.

[...]

- Nós vamos o que? - Pergunto em um tom indignado, por eu estar com a minha boca cheia com pão de forma com geléia a frase não passou de um murmuro ininteligível.

- Vamos nos mudar para Brasília. - Minha mãe responde num tom ameno como se tivesse me falado sobre a mudança climática. - O Fraga recebeu uma ótima proposta de emprego, vamos acompanhá-lo.

Engulo o restante do pão e bebo um pouco do meu café para molhar a garganta, olho para os dois como se um terceiro olho estivesse brotando da testa deles. Eles estavam malucos?

- Você está convenientemente esquecendo que eu passei numa faculdade? - Pergunto de forma retórica. - Eu não posso ir embora, como eu vou largar tudo aqui e meter o pé? Vocês ficaram doidos, só pode.

- Você pode cursar outra coisa, você é inteligente, Rafa, pode prestar vestibular para Direito ou Medicina. - Minha mãe tenta apaziguar a situação e eu fico ainda mais chateado, eu queria ser professor de Educação Física, não nasci para viver de terno e gravata ou em jalecos desconfortáveis.

- Você não pode decidir o que eu tenho que cursar na faculdade, nós já tivemos essa conversa e eu já deixei claro que eu não quero ter uma vida triste como a sua.

- Rafael, não fale assim com a sua mãe. - Fraga me repreendeu e eu ignorei todas as normas sociais e comecei a rir. - Estamos falando sério, essa proposta é ótima, eu serei assessor do Senador Dantas, posso aprender muito até a próxima eleição. Isso vai ajudar muito a nossa família.

- É claro, me afastar dos meus amigos e do meu pai vai me ajudar muito, como eu não pensei nisso. - Debocho. - Então é isso, nós vamos para uma cidade desconhecida só para o Fraga poder lamber as bolas de outro engravatado?

- RAFAEL! - Minha mãe grita em repreensão enquanto Fraga me olha como se não me reconhecesse.

- Viu, Rosane, eu falei que se ele mantivesse contato com o fascistóide do Roberto, ia terminar assim. - Fraga ironiza e eu sinto vontade de jogar minha caneca na cabeça dele.

- Não fala do meu pai.

- Ou o que?

- Não fala do meu pai, porque você não é homem o suficiente para questionar a índole dele e você - Me viro para a minha mãe. - não vai defender o homem que você jurou perante a Deus que amava? Vocês se merecem mesmo.

Levanto da mesa e vou para o meu quarto, não passaria mais um dia sob o teto deles, não quando eles provaram que meus sonhos não eram impeditivos para eles planejarem mudanças drásticas. Jogo a minha grande mala de viagem em cima da cama, pego as minhas roupas dentro do armário e coloco-as dentro da mala, eu não voltaria aqui nem para pegar um alfinete. Desconecto o meu videogame da TV, enfiando-o dentro da minha mochila, junto com meu notebook e o meu caderno de desenhos. Obviamente eu teria que abrir mão de muitas coisas, mas isso era por uma boa causa, encaro meu quarto vendo a coleção de Lego, minha guitarra elétrica, os inúmeros desenhos colados na parede, os CDs e DVDs que eu coleciono desde a infância e algumas decorações com um alto valor afetivo.

Chegou a hora de cortar o cordão umbilical de uma vez por todas. Saio do quarto na mesma velocidade que eu entrei, arrastando a mala e com a mochila pesada nas costas, encaro os dois que ainda estavam sentados na mesa de jantar e atravesso a porta da casa, saindo em direção a lugar nenhum. Chamo um uber para o Catete, para a casa do meu pai, a viagem é curta, mas algumas lágrimas teimam em cair ao lembrar da situação, ainda não conseguia entender como a minha mãe preferia apoiar os sonhos do Fraga, por mais patético que sejam, e fazer pouco caso dos meus.

O motorista para na frente de um prédio pouco tecnológico, mas aconchegante, esse era o prédio onde moramos antes do divórcio e de toda a confusão. Abro a porta e aceno para o porteiro que libera a minha entrada, o elevador não era um dos melhores, mas me poupou de subir três andares com essa mala pesada, em pouco tempo estou na frente da porta do apartamento 303. Minhas mãos tremiam levemente e eu sentia meu coração bater cada vez mais forte, será que meu pai iria aceitar a minha presença?

Sem pensar duas vezes bato na porta e espero ser atendido, sabia que meu pai estava em casa, hoje era o dia de folga dele, torci mentalmente para ele não estar dormindo, seria péssimo estragar o descanso dele. Pouco tempo depois a maçaneta se move e a porta se abre.

- Rafael, o que aconteceu?

N/A: Espero que gostem, por favor deixem votos e comentários na história, só assim posso saber que vocês estão curtindo o rumo que a trama está tomando.

TEMPO PERDIDO - capitão nascimento.Onde histórias criam vida. Descubra agora