Capítulo 1 - Como um cão sem dono me ponho a ladrar

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Mas não sou beata, me criei na rua

E não mudo minha postura só pra te agradar

Vim parar nessa cidade, por força da circunstância

Sou assim desde criança, me criei meio sem lar

Garganta - Ana Carolina

"Caroline não gostava de azeitonas." Isso era um fato indiscutível, conhecido por todos que trocaram mais de três palavras comigo, além disso não gosto de frequentar baladas, de filmes de drama e de bolo de banana. Oras, eu já tinha 27 anos, e a ideia de ficar imprensada entre dezenas de jovens suados, possivelmente drogados e bêbados era desprezível, eu gosto de ouvir minha MPB, beber vinho e curtir a brisa de um baseado antes de ir para cama. Minhas poucas amigas me chamam de antiquada e costumam dizer que não sei aproveitar a vida. Eu penso o oposto, gosto de viver a vida, mas do meu jeitinho. Sempre fui dos livros, dos discos e das receitas culinárias, para mim não há nada mais gostoso do que assar um bolo ouvindo Jorge Ben Jor e bater papo com alguém querido enquanto espera o forno fazer o seu trabalho.

O costume de não gostar de badernas, festas e resenhas veio desde muito nova, minha adolescência não foi sociável, não tinha amigos na escola para me convidar para festas, estava ocupada demais sofrendo bullying das pessoas que organizavam as festas, e com o tempo meu único refúgio eram meus cobertores e minha série favorita, Criminal Minds. Era o único momento onde eu não precisava mascarar meus costumes para me encaixar em padrões, sem falas preconceituosas das pessoas, sem nada além de mim mesma e de Spencer Reid. Afinal, gênios se reconhecem, não é mesmo?

Todos sabiam que eu era grande demais para Santa Maria Madalena, a pequena cidade onde nasci, ouvia desde o dia que ingressei no ensino médio que eu deveria prestar vestibular para as faculdades da capital, fugir da monotoniedade da cidade pequena, e foi por isso que eu fugi aos 18 anos para encontrar meu lugar no mundo. Só que eu não me inscrevi para o vestibular de Pedagogia ou de Letras, eu prestei a prova para a PMERJ, passei em uma colocação louvável e me tornei uma agente da segurança pública, subvertendo todas as, poucas, expectativas que os meus pais tinham para o meu futuro.

No fundo eu sabia que meus pais não haviam perdido tempo pensando se eu seria alguém na vida, toda a atenção dos dois estava presa em Felipe, meu irmão mais velho, a pessoa mais desprezível que já havia conhecido, e olha que meu trabalho é cuidar dos mais vis do Estado. Toda a minha família enchia a boca para dizer o quão indesejada era a minha existência, desde comentários sobre meu corpo quanto sobre a minha personalidade, meus hobbies e sonhos não passavam de motivos de piadas para eles, e assim eu cresci, sozinha e sem o mínimo de apoio.

Maria Madalena, além de padroeira da minha cidade natal, também era padroeira das pessoas ridicularizadas por serem piedosas demais, era assim que eu me sentia. Sempre tive problemas em falar "não" para as pessoas, não gostava de atrapalhar e de criar caso ao expor meus sentimentos e descontentamentos, ouvia calada, assentia e quase sempre via meu bem-estar se esvair em prol da felicidade alheia. Desde criança fui moldada pela minha família para ser a filha perfeita, não fazer perguntas, não ter vontade própria e deixar que meu irmão escolhesse o que quisesse, roupas, atenção, comida, e eu aceitava o resto sem discutir.

Minha existência não era desejada desde o útero, e era óbvio que as minhas vontades não seriam atendidas.

Com o tempo eu consegui me desvencilhar das garras do fantasma da cidade pequena, eu cultivava um estilo próprio, uma rotina de mulher adulta, um corte de cabelo inovador, eu gostava de usar mini-saia, comer fast-food, transar sem compromisso, subir morro para lutar contra o tráfico, beber caipirinha feita em casa. Eu gostava de morar na capital, óbvio que tinha seus lados ruins, como o trânsito, a necessidade inesgotável de toque do meu chefe (mesmo que ele nunca tenha feito isso com um policial homem), o condomínio extremamente caro e a falta de segurança pública.

TEMPO PERDIDO - capitão nascimento.Onde histórias criam vida. Descubra agora