Capítulo 3_Laços de Sangue

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A sala mergulhou em um silêncio absoluto após o pacto de sangue. As velas tremeluziam suavemente, e a brisa que entrava pelas rachaduras nas paredes sussurrava segredos antigos, como se o próprio edifício estivesse vivo, testemunha de inúmeros pactos selados ao longo dos séculos. Clara observou, em transe, o fio de sangue que escorria de seu pulso e manchava as páginas do livro. A tinta dourada dos símbolos antigos parecia brilhar mais intensamente, como se o sangue despertasse algo oculto nas profundezas do universo.

Dante permaneceu imóvel, seu olhar fixo nas gotas rubras que agora pertenciam a ele tanto quanto pertenciam a ela. Ele segurou o pulso de Clara com uma força suave, e embora a intensidade do momento fosse inegável, ela não sentiu dor. Apenas um peso no ar, uma pressão crescente que fazia o coração dela bater de forma errática.

Ele ergueu os olhos para ela, e Clara viu algo novo neles. Não era apenas desejo ou domínio, mas uma sombra de melancolia, de lembrança. Ela se perguntou, por um breve segundo, se havia mais naquela criatura do que o vazio sombrio que ele aparentava ser.

-Agora estamos ligados, Clara. Mais profundamente do que qualquer laço mortal ou promessa terrena poderia criar,-disse ele, com a voz suave, quase um murmúrio.

-O sangue sela o que as palavras começaram. E esse vínculo… não pode ser desfeito.-

As palavras dele ecoaram na mente de Clara, e ela se deu conta da profundidade do abismo no qual havia se lançado. A sensação de alívio que havia sentido logo após o corte começava a se dissipar, dando lugar a uma crescente inquietação. A realidade da situação do que havia feito e do que havia se tornado pesava sobre seus ombros como correntes invisíveis. Ela pertencia a Dante agora. Seu destino estava irremediavelmente entrelaçado ao dele.

Ela puxou a mão de volta, levando o pulso ferido aos lábios, sentindo o gosto metálico do próprio sangue. Seu corpo inteiro tremia, mas não de medo era algo mais, uma mistura de adrenalina e a inevitável aceitação do que agora era sua nova realidade.

-E o que acontece agora?- ela perguntou, quebrando o silêncio. Sua voz parecia estranha para ela mesma, como se não fosse mais completamente sua. Dante ainda a olhava com aquela expressão enigmática, difícil de decifrar.

-Agora, você começa a entender o que significa pertencer a mim,- ele respondeu, caminhando ao redor da mesa, aproximando-se dela com a confiança de um predador que sabia que sua presa não tinha para onde correr.

-Esse não é o fim, Clara. É apenas o começo.-

Ele tocou o rosto dela, seus dedos frios, e Clara fechou os olhos por um momento. A presença dele parecia se intensificar ao seu redor, preenchendo cada canto da sala e, de alguma forma, cada parte dela. Sua respiração acelerou, não apenas por causa do toque, mas pelo que aquilo representava. O pacto de sangue não era apenas um símbolo. Sentia que algo dentro dela estava se transformando.

-Eu te entreguei minha alma,- ela murmurou, tentando entender o peso de suas próprias palavras.

-Não,- Dante corrigiu, sua voz sombria e carregada de segredos. -Você me entregou algo muito mais valioso.-

Clara franziu o cenho, confusa. -Mais valioso que a minha alma?-

Ele riu suavemente, uma risada que ecoava pelas paredes, como um trovão distante.

-Sim. Sua humanidade.-

Aquelas palavras a atingiram com força, e ela sentiu o chão quase se desfazer sob seus pés. Seu corpo parecia subitamente pesado, como se estivesse sendo puxada para baixo por mãos invisíveis. Sua humanidade… era isso que havia perdido? O que restaria dela, então? Apenas uma sombra? Uma casca vazia presa a Dante para sempre?

Ela deu um passo para trás, tentando se afastar dele, mas o olhar de Dante a prendeu no lugar.

"Não tente fugir de algo que você escolheu, Clara. Agora que o laço está selado, suas dúvidas, seu medo… tudo isso é inútil. Você vai aprender a abraçar sua nova realidade, e eu estarei aqui para guiar você.-

O medo começou a se enraizar dentro dela de uma forma que ainda não havia experimentado. Clara sempre se considerou forte, capaz de enfrentar a dor e o vazio, mas agora, diante da imensidão do que havia feito, sentia-se impotente. O pacto com Dante era mais do que uma escolha momentânea. Ele havia mudado algo profundo em sua alma, algo que ela ainda não compreendia completamente.

Dante, como se pudesse ler seus pensamentos, deu mais um passo à frente e segurou seu rosto entre as mãos, forçando-a a olhar para ele.

-Eu sei o que você está pensando. Que perdeu algo. Que foi longe demais. Mas, Clara, a verdade é que você nunca foi tão inteira quanto agora. Eu não tirei sua humanidade. Eu a expus.-

Ela tentou se desvencilhar, mas ele a segurou firme.

-Pense em todas as vezes que você se sentiu perdida, em pedaços. Você procurou algo que nunca pôde encontrar no mundo mortal. Não é o destino de todos? Vagarem entre sombras, sem jamais entender de onde vem a escuridão que carregam? Eu te dei clareza. Eu te dei propósito.-

Clara mordeu o lábio, contendo as lágrimas que ameaçavam cair. Ela não queria chorar, não diante dele. Não queria mostrar fraqueza, mas as palavras dele a atingiam como golpes certeiros, rasgando as barreiras que ela havia construído para se proteger.

-Eu não pedi por isso,- ela sussurrou, quase como uma súplica. Seu corpo tremia, suas emoções conflitantes a levando à beira de um colapso. -Eu só queria...-

-O que você queria, Clara?-Dante interrompeu, a voz dele grave e firme.

-Queria paz? Queria alívio? A verdade é que você queria escapar. Escapar da dor, do vazio, da insignificância. E agora você não precisa mais fugir.-

Ela finalmente permitiu que as lágrimas escorressem. A dor emocional misturava-se com a estranha sensação de libertação que começava a brotar em seu interior. Ele estava certo, de certa forma. Ela sempre havia buscado algo que a fizesse sentir viva, algo que preenchesse o vazio dentro dela. E, de alguma maneira, Dante representava isso. Ele era a escuridão que a consumia, mas também era a luz perversa que a guiava para dentro de si mesma.

Ele a puxou para mais perto, envolvendo-a em seus braços. Clara se deixou levar, seu corpo frágil cedendo ao calor avassalador dele. Por um breve momento, ela sentiu-se protegida, como se Dante fosse tanto sua ruína quanto sua salvação.

-O que você é para mim?- ela perguntou, sua voz mal saindo de seus lábios.

Dante inclinou a cabeça, o sorriso malicioso voltando a seus lábios.

-Eu sou sua perdição, Clara. E, ao mesmo tempo, sou tudo o que você sempre quis.-

Ela queria protestar, mas sabia que não havia mais espaço para resistência. Algo dentro dela havia mudado. Ela não era mais a mesma mulher que entrou naquele beco naquela noite. A conexão com Dante, selada pelo sangue, era mais poderosa do que qualquer corrente física, mais forte do que qualquer laço mortal.

E, no fundo de sua alma, onde a luz há muito tempo se apagou, Clara soube que, mesmo que quisesse, não poderia mais voltar atrás.

Naquela noite, ao lado do Diabo, Clara não chorou. Ela abraçou a escuridão.

She Cries For The Devil Onde histórias criam vida. Descubra agora