Capítulo 4_O Abraço da Escuridão

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A noite envolveu Clara como um manto pesado e sufocante. Quando deixou o santuário de Dante, a chuva havia cessado, mas o ar ainda estava carregado com a umidade que impregnava sua pele e fazia os fios de seu cabelo grudarem em sua testa. Ela não conseguia parar de pensar nas palavras dele, na forma como elas ecoavam dentro de sua mente como uma sentença definitiva.

Dante havia dito que agora ela era parte dele, e quanto mais Clara refletia sobre isso, mais percebia que algo dentro de si estava, de fato, se transformando. A dor que sempre a acompanhava, o vazio que a assombrava em todos os momentos de sua vida, parecia estar se remodelando. Não havia desaparecido completamente, mas havia se tornado algo diferente, algo que ela ainda não sabia nomear. Talvez fosse poder. Ou, talvez, fosse a aceitação de que sua escuridão sempre seria parte de quem ela era.

Ela parou na beira de uma praça deserta, as árvores balançando levemente com o vento. Clara observou o movimento das sombras, as luzes fracas dos postes projetando formas distorcidas no chão. O mundo ao seu redor parecia mais lento, como se estivesse fora de sincronia com ela. Cada passo que dava parecia ecoar no silêncio da noite, como se a cidade estivesse retendo o fôlego, esperando algo terrível acontecer.

E talvez estivesse.

Ela sentou-se em um dos bancos de madeira desgastados e abraçou os próprios joelhos, observando as sombras à distância. O corte em seu pulso ainda ardia levemente, um lembrete constante do pacto que havia selado. Um pacto de sangue. Um laço com Dante que não poderia ser desfeito.

-Eu sou sua perdição, Clara,- ele havia dito. Mas ela não conseguia decidir se isso era uma maldição ou uma promessa.

A presença de Dante era esmagadora, mesmo quando ele não estava ao seu lado. Sua lembrança estava impregnada em sua pele, como o perfume de algo proibido que ela jamais poderia lavar. Ela havia feito sua escolha, e não podia fugir do caminho que havia trilhado. Parte de si ainda lutava para aceitar o que isso significava  perder sua humanidade, entregar-se completamente a ele  mas outra parte estava começando a entender que talvez aquela fosse a única maneira de realmente se encontrar.

Seu coração batia descompassado enquanto refletia sobre a verdade inquietante: a destruição de quem ela era não parecia ser o fim. Pelo contrário, parecia ser o começo.

Enquanto Clara mergulhava nesses pensamentos, sentiu uma mudança no ar. Algo sombrio, denso, se aproximava. Ela ergueu os olhos e, ao longe, viu uma figura emergir das sombras. Sua presença era inconfundível, mesmo na penumbra. Dante se movia como se fosse parte da própria escuridão, e quando seus olhos se encontraram com os dela, Clara soube que ele havia vindo buscá-la novamente.

Sem dizer uma palavra, ele se aproximou e sentou-se ao seu lado no banco, deixando um espaço pequeno entre eles. O cheiro dele  uma mistura de algo amadeirado e metálico  preencheu o ar ao redor dela, intoxicante como sempre.

-Você está assustada,- ele disse, quebrando o silêncio. Sua voz era calma, mas havia uma nota de curiosidade nela, como se ele realmente quisesse entender o que se passava dentro dela.

Clara olhou para ele de relance, tentando decidir se deveria admitir o que sentia. Mas qual seria o ponto em mentir para Dante? Ele parecia enxergar através dela de qualquer forma.

-Eu deveria estar,-ela respondeu.

-Mas não estou. Pelo menos, não da forma que eu deveria.-

Dante sorriu levemente, mas seus olhos permaneceram sérios.

-E como você acha que deveria se sentir?-

Clara suspirou, passando a mão pelos cabelos, sentindo o peso da umidade acumulada neles.

-Aterrorizada. Eu deveria estar fugindo de você. Eu deveria estar tentando voltar à minha vida. Mas… não consigo mais imaginar voltar para o que eu era antes.-

Dante assentiu lentamente, como se compreendesse completamente. Ele se inclinou um pouco mais perto dela, e Clara sentiu o calor de seu corpo irradiar contra sua pele.

-Isso é porque você encontrou a verdade, Clara. E a verdade é que o que você era antes era uma prisão. Uma mentira que você contou a si mesma, tentando se conformar com o mundo ao seu redor.-

Ele fez uma pausa, observando-a atentamente, antes de continuar.

-Agora, você está livre. Livre para ser quem realmente é, sem as limitações que os outros impõem. Sem as correntes da moralidade, das expectativas.-

Clara mordeu o lábio, absorvendo suas palavras. Elas faziam sentido. Demais, na verdade. Ela sempre sentiu que não se encaixava, que o mundo ao seu redor estava errado, como se estivesse tentando forçá-la a ser algo que ela não era. Dante estava oferecendo a ela uma alternativa. Um caminho diferente, onde ela não precisava se esconder, onde ela podia abraçar sua escuridão ao invés de temê-la.

Mas, ao mesmo tempo, havia uma parte de Clara que se agarrava ao pouco que restava de sua antiga vida. Não era uma questão de moralidade, mas de identidade. Quem ela seria se abandonasse completamente tudo o que havia sido?

-Eu não sei quem eu sou,- ela confessou, a voz saindo em um sussurro.

-Agora, parece que tudo está se despedaçando, e eu não sei o que restou de mim.-

Dante a observou em silêncio por um momento, sua expressão inabalável. Então, ele se aproximou mais, de modo que suas palavras foram ditas diretamente ao ouvido dela, suaves e carregadas de uma promessa sombria. -Você é minha, Clara. E, sendo minha, você será o que eu fizer de você.-

Clara fechou os olhos, sentindo o peso daquelas palavras. Elas eram ao mesmo tempo reconfortantes e assustadoras. Parte dela ansiava por se entregar completamente, por parar de lutar contra o que parecia ser inevitável. E a outra parte a parte que ainda resistia estava cada vez mais fraca.

Dante tocou seu rosto, um gesto quase carinhoso, e Clara sentiu seu corpo estremecer com o toque. Ele se levantou do banco, estendendo a mão para ela.

-Venha comigo.-

Ela olhou para a mão dele, hesitando por um segundo. Este era o momento em que ela poderia decidir. Poderia se levantar e ir com ele, ou poderia fugir, voltar à vida que conhecia, por mais que aquela vida lhe parecesse vazia agora.

Mas, no fundo, Clara sabia que a escolha já havia sido feita. Ela nunca poderia voltar.

Pegando a mão dele, ela se levantou, sentindo um arrepio percorrer seu corpo. Dante a puxou para mais perto, e ela viu o brilho predatório em seus olhos.

-Vamos começar.-

-Começar o quê?- Clara perguntou, a voz baixa, quase um sussurro.

Dante sorriu. Um sorriso sombrio, carregado de promessas e perigos.

-A destruir o mundo que você conheceu.-

Enquanto ele a guiava pelas sombras da noite, Clara sabia que não havia mais volta. Ela havia abraçado a escuridão e agora, o mundo teria que aprender a conviver com isso.

She Cries For The Devil Onde histórias criam vida. Descubra agora