O mato estava alto, escuro e o ar um pouco úmido e fresco. Um dia gostoso no quesito clima, mas meio claustrofóbico na questão ambiental. Me esgueirei por ali sem levantar um som sequer, sempre fui bom em ser furtivo. Vez ou outra encontrava uma florzinha laranja perdida, solitária, isolada, e era uma visão e tanto ver uma outra cor no meio daquele mar verde. Grato pelas florzinhas. E às pedras também. Haviam algumas brilhantes incríveis, um agrado sortudo a quem as encontra.
Eu não sabia bem para onde meu focinho e bigodes iriam me levar dessa vez, mas confiei neles como o habitual. Era minha missão. Um frio na espinha me arrepiou todo algumas vezes, isso era diferente e me deixou paralisado em alguns pontos do caminho. Um vento parecia me cortar, gélido, mas não passou pelas minhas ideias o que poderia haver de diferente aqui. De qualquer forma, apostei na precisão dos meus sentidos para essas coisas e segui em frente.
O céu estava em um azul escuro clareado. Clareado? Sim, óbvio, estava repleto de estrelas e uma lua muito redonda pálida, uma bola enorme de luz, um gigantesco espelho ao lado de seus vagalumes lá no alto. Eu não precisava dessa iluminação toda para ver na noite. Era lindo e nada mais.
Passeando por ali me deparei com uma visão distinta do que até ali eu tinha encontrado em meu caminho. Meus olhos viram um sujeito ajoelhado ao chão curvado sobre um montinho de terra à sua frente, em que sobre ele havia algumas flores, exatamente aquelas que encontrei no trajeto até aqui, as alaranjadas solitárias.
Farejei tentando entender aquela cena, e me sentei pra olhar. O sujeito soluçava, se remexia de um jeito melancólico, os cabelos negros desgrenhados lhe cobriam o rosto. Notei suas mãos sujas de vermelho, um vermelho empoeirado claro de pura terra escura arroxeada. Deslizava uma das mãos sobre o montinho à sua frente; parecia acariciar.
Depois de um longo tempo assim, espetou mais algumas flores no montinho, daquelas laranjas, deixando tudo bem laranja, bem enfeitado, cobrindo toda a terra, fazendo uma linda coberta de flores.
Terminado, o sujeito sentou sobre os próprios calcanhares e permaneceu ali. Olhando vidrado para o cobertor laranja que fez para o montinho. Suspeitei que não era só um monte comum de terra.
Ele puxou algo ao seu lado, tirando-o de um saco. Era um pedaço de pedra claro quase retangular, parecia ser o formato natural daquela pedra ser um retângulo irregular, um achado e tanto. Afundou aquele pedaço de pedra numa das pontas do monte, o que o deixou bem similar a uma cabeceira de cama.
Fuçou outra vez no seu saquinho jogado ao chão do seu lado, retirou um pedaço de carvão. Rabiscou alguma coisa na pedra. Tornou a se sacudir em silêncio, os ombros tremendo, as mãos sujas foram aos olhos cobrindo seu rosto.
Meus bigodes me alertaram que era aqui meu destino. Então levantei. Apareci ao lado do sujeito, que não me viu. Sentei-me enrolando a cauda em torno das minhas patas. Contemplei o soluçante humano. Era isso que era, agora que vi de perto. Sabe como eles são não é? Como gatos grandes, só que um pouco mais pelados e bobos.
Ele demorou para me ver. Tive paciência. Mas quando viu, o humano se inclinou um pouco para o lado oposto de mim. Me encarou com aqueles olhos pequenos, vermelhos e apertados de inchaço. O rosto parecia-se com uma bolacha redonda.
Dos humanos que já tive — tanto a felicidade, quanto a infelicidade — de conhecer, veja bem, esse não era dos mais interessantes. Era mirrado, demasiado magro, maltrapilho, desgrenhado. Os cabelos compridos bagunçados, a barba meia por fazer, os lábios rachados, listras de lágrimas no rosto empoeirado de terra com marcas dos próprios dedos de se auto esfregar. As maçãs do rosto inchadas, bem como toda a área dos olhos estreitos. Um certo tremor nas mãos ficava mais evidente conforme eu ia analisando ele todo.
Dissemos nada um ao outro. Eu também não quis soltar a voz agora, parecia ser um momento de silêncio importante para ele. Mas eu quis mostrar pelo menos que era amigável, levantei, com a cauda apontada para o céu, com um leve curvar como um ponto de interrogação, caminhei com gingado, esgueirando com moleza, eu queria dizer "hey amigo, estou aqui só para bisbilhotar, nem se preocupe, sou da paz". É importante passar tranquilidade para eles numa hora dessas.
Ele se endireitou na sua posição de antes, ficou me olhando, até que me aproximei demais da pedra e ele quase deu um pulo sacudindo as mãos. Disse pra eu sair dali, que podia derrubar.
"Ora, meu caro, eu sei me mover como uma pluma, não vou derrubar nada."
Miei isso para ele. Não sei se ele captou, talvez sim, ficou menos agitado.
Sorriu para mim. Mas um sorriso caído, frouxo, que os olhos não acompanharam, pois novamente estavam brilhando como duas lagoas escuras e voltando a escorrer feito cachoeiras perdidas na mata. A água cristalina e salgada desceu até cair de seu queixo, pingando em suas mãos sobre seus joelhos. Enfiou os dedos no tecido das calças, apertando, tremendo, olhou o cobertor laranja outra vez e caiu naquele pranto profundo de antes, agora mais barulhento.
Olhei também aquelas flores. Tinham um cheirinho amargo e profundo de mato, mas apesar disso tinham uma aparência macia, fofa e doce.
Toquei algumas delas com a pata direita que eu domino aha-ha. Sem querer dei uma puxadinha para fora, opa, foi mal mesmo. Olhei e pisquei para ele para pedir desculpas por isso, mas ele nem tinha visto o que fiz. Ainda estava afundado dentro de si mesmo, em sua própria dor.
O que doía afinal?
Eu tinha que perguntar, eu acho.
"O que há?"
Miei pra ele, baixo, agudo, curto e quase choroso, como um bebe.
Bebe é a palavra chave, fale como um filhote de humano!
Ele olhou pra mim, viram só?
Olhou-me por debaixo daqueles cabelos escuros espatifados que pareciam muito um corvo morto. Remexeu os dedos e as mãos de uma forma peculiar — pra não dizer estranho — algumas vezes. Depois as fechou em punho e deixou-as descansar nos joelhos. Ainda me olhava.
Agora era a vez dele me avaliar. E o que ele estava vendo? Eu lhes digo: um exemplar felino, em todos os sentidos, de pelo curto negro; tirando minhas patas, as quatro eram brancas. Me conheciam como o gato calçado. Ridículo eu sei, mas era o que fazia sentido para as pessoas, acharem que minha coloração eram sapatos. Focinho rosa e olhos grandes cinzelados em cor verde com orelhas pontudas, finalizavam a exuberância de meu corpinho.
Deu outro sorriso. Ah... esse mais sincero, os olhos também se curvaram agora, conectados e em concordância.
Estendeu uma daquelas mãos trêmulas para mim, os dedos todos com as unhas pretas de terra. Não liguei, fui e me esfreguei naqueles dedinhos. Tinha uma mão leve, apesar do peso que aparentava no rosto.
Fitei-o de perto agora, vi um rosto de olhar distante, olhos frios e vazios, duas bolas negras num fundo branco avermelhado salgado. Olhava e não via. Sua parte racional estava bloqueada, distante.
Fui insistente, coloquei as duas patas dianteiras sobre suas pernas, então ele piscou várias vezes, muitas mesmo, e conseguiu expulsar o resto de água que ainda embaçava suas vistas.
Finalmente, de verdade, olhou pra mim.
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Em busca de um bom lugar
FantasiaUm sujeito sem importância, vivendo dias que não valem nada, acreditando que nunca mudarão, afundado na sua insignificância rodeada de vazio, é encontrado por uma criaturinha peluda que lhe oferece companhia sem cobranças.