O dia amanheceu em um tom amargo. Xu Lee passou a madrugada sentada em frente às cinzas do templo de Kong Fu Lee Yang. Os bombeiros isolaram o local, impedindo que a garota entrasse para procurar pela sua querida avó. Ela chorou por horas a fio durante a madrugada, até suas lágrimas secarem de tanto chorar. O que ela faria a partir dali? Onde seria a sua casa? Para onde ela deveria seguir? A garota abraçou as próprias pernas, desesperançosa. Ela abaixou a cabeça na intenção de chorar mais um pouco, mas uma voz desconhecida interrompeu seu luto.
– Moça? Você está bem? – A voz perguntou.
– Eu já avisei aos bombeiros que não vou a lugar nenhum. Então... – Xu Lee parou de falar quando olhou para frente. Pensou que fosse uma enfermeira ou algum outro funcionário filiado ao corpo de bombeiros. Contudo, ela deu de cara com um rapaz de pele preta que tinha uma expressão sincera de preocupação no rosto. – Q-Quem é você?
– Eu sou Keen Xong. Soube do incidente aqui perto e vim ver como estavam as coisas. – O homem tinha a voz leve, tranquilizadora. – Você está bem?
– Sim, eu estou. – Xu Lee enxugou algumas lágrimas do rosto, tentando ficar mais apresentável. – Eu me chamo Xu Lee, não sofri nenhuma queimadura. Mas a minha avó, Lau Yang, não sobreviveu.
A garota precisou se esforçar para não cair no choro novamente. Ela desviou os olhos do rosto de Keen, encarando os destroços do templo. Um grupo de bombeiros estava fazendo uma vistoria no local, procurando por objetos que não foram danificados pelas chamas e, possivelmente, procuravam também o corpo da vovó Lau. Keen abaixou-se e ficou de frente para Xu, forçando a jovem a olhar para ele.
– Passar o resto do dia aqui não vai fazer as coisas voltarem a ser como eram antes.
– Você tem razão. – Xu abaixou o tom de voz, nervosa. – Mas eu não tenho para onde ir. O templo era minha casa. Eu vivia para seguir os ensinamentos da minha vovozinha.
– Entendo. – O rapaz cruzou os braços. – Uma conhecida minha treinou nesse templo, passou anos tendo aulas com sua avó. Essa amiga falava muito bem das aulas. Aposto que sua avó era uma excelente professora.
– Era... – A menina apoiou a cabeça nos joelhos dobrados. – É estranho falar no passado.
– Eu sei. – Keen encarou a moça por alguns segundos. – Você não quer ir para a minha casa? Eu não moro muito longe daqui, podemos ir a pé. E as roupas da minha irmã devem servir em você. Você pode tomar banho e se trocar por lá.
A mente de Xu Lee estava longe, ainda tentando assimilar tudo o que acontecera. Era como se, desde o momento do incêndio até agora, ela vivesse em um sonho bizarro esperando a hora de despertar. Entretanto, aquela era sua nova realidade. E era difícil admitir isso. Ela encarou o rosto sereno de Keen, perguntando-se se essa seria a melhor opção. A sua avó com certeza diria que não, mas a sua avó não estava mais ali. Xu Lee estava sozinha no mundo e precisaria de ajuda para seguir em frente. Talvez aquele homem fosse um sinal do destino para seguir em frente. Ela respirou fundo.
– E aí? – Keen perguntou, ansioso. – Eu entendo se você não quiser ir.
– Eu vou. Não posso ficar aqui o dia todo. Mas não devo passar muito tempo na sua casa.
– Você tem outro lugar para ir?
– Talvez...
Xu Lee levantou-se e colocou a mão no bolso, certificando-se que o papel com um endereço do Brasil ainda estava lá. O último presente da sua avó. Ela caminhou ao lado de Keen, que tomou cuidado para não encostar na moça. Xu tinha os passos vacilantes e olheiras profundas, mas seguiu viagem.
De fato, a casa de Keen Xong não era muito longe. Eles levaram pouco mais de 10 minutos para chegar na residência do rapaz. Assim que entraram, ambos tiraram os sapatos para andar de meias na residência. Era uma casa mediana, não muito grande, mais aconchegante o suficiente para viver bem. Xu Lee sentou-se em uma poltrona na sala, olhando para a televisão desligada. Enquanto isso, Keen corria de um lado ao outro, tirando alguns pratos de lamém sujos da mesa e organizando a cozinha o mais rápido possível.
Xu Lee percebeu que do lado da televisão havia um porta-retratos com uma fotografia de duas crianças sorridentes. Uma delas era uma menina de cabelos longos e lisos, pretos, e a outra criança era um menino de cabelo curto. Ambos possuíam a pele preta. Pareciam felizes. Os pensamentos de Xu foram cortados pela voz de Keen.
– Xu, vem conhecer a minha irmã.
– Está bem. – A moça deixou o porta-retratos onde encontrou e caminhou pelo corredor, chegando a um quarto repleto de inúmeras coisas jogadas a esmo: maquiagens, roupas, chapéus, sapatos, moletons, quimonos etc.
No centro do quarto, uma jovem de 20 anos estava deitada na cama, entretida com o seu celular. Xu reconheceu a garota da foto, mas agora com traços mais maduros e adultos.
– Yotra, temos convidados! – Keen falou de uma maneira divertida, mas a reação da irmã não foi no mesmo tom.
Yotra levantou-se da cama enfurecida e empurrou o irmão para fora do quarto, o que fez Xu sair do cômodo também. Assim que chegaram no corredor, a menina fechou a porta do quarto.
– Eu já disse para você me avisar antes quando trouxer uma namorada! O meu quarto está uma bagunça!
Keen ficou vermelho na mesma hora e coçou a cabeça, envergonhado. Já Xu Lee teve que se esforçar para controlar a tremedeira do seu corpo. Eles tinham acabado de se conhecer, não eram namorados! Por sorte, Keen voltou a falar.
– Ela é uma amiga. Não namoramos nem nada do tipo. Você soube o que aconteceu com o templo?
– Claro que sei, estão postando isso direto. O que tem?
– Xu Lee era neta da professora Lau. – O rapaz disse, apontando para a jovem de cabelos loiros. – Lau não sobreviveu.
– Meu Deus, me desculpe por isso! – Yotra curvou o corpo em tom respeitoso, sentindo-se envergonhada. – Você está bem?
– Sim, estou... – Xu respondeu, tímida.
– Eu pensei em você emprestar algumas roupas para ela. – Keen continuou. – Acho que nada sobrou do incêndio.
– Claro que eu posso. E outra, eu empresto minhas maquiagens também! E outra, pode usar até meus sapatos. Vem, vou te ajudar.
Yotra puxou o braço de Xu e entrou no quarto, dessa vez fechando a porta na cara de Keen. Xu estava aflita, não sabia como deveria se comportar na frente da nova amiga. Ela sentou-se na cama e viu Yotra puxando as roupas do guarda-roupa, colocando sobre o próprio corpo e fazendo comentários como: "Acho que essa cor combina com seus olhos", "Esse vestido vai ficar curto, melhor não", "Experimente esse, vai ficar lindo em você". Xu apenas balançava a cabeça, tentando parecer positiva. O luto pela perda da avó ainda existia e era difícil sorrir, mas via que Yotra se esforçava para deixa-la animada. Por isso, relaxou um pouco e resolveu aceitar a ajuda da nova amiga.
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Pé de Chinesa
FanfictionXu Lee (Jade Picon) foi criada pela sua avó, Lau Lee Yang (Fernanda Montenegro), em um templo de Kong Fu na China. Xu foi trazida do Brasil para a China quando ainda era muito nova. Ela não se lembra da mãe e sonha em um dia reencontrá-la. Durante s...