𝙲𝚊𝚙í𝚝𝚞𝚕𝚘 𝟼

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𝙾𝚗𝚍𝚎 𝚎𝚞 𝚙𝚛𝚘𝚌𝚞𝚛𝚎𝚒

𖡼.𖤣𖥧𖡼.𖤣𖥧

  Bem cedinho, no dia seguinte, eu tentei sair de casa com Makeda em mãos, porém fui interceptada por Estevão com um pote estendido me esperando na sala.
  — Lucília! Achou a Mia! Que notícia boa! — Ele largou o pote na mesa e correu em minha direção.
  — Sim! Ela apareceu aqui em casa ontem à noite, graças a Deus ela está bem.
  Makeda se esfregou no meu braço ao ouvir minha voz, ela não é igual aos outros bichinhos em minha presença, mas finge muito bem. Bom, exceto que ela não tenta pegar Bolinhas, que está em cima da minha cabeça, assim como os outros gatos.
  — Excelente! Fico muito feliz em saber que ela voltou para a casa em segurança! Eu... — Estevão gaguejou um pouco e então apontou para o pote que antes estava em suas mãos. — Minha mãe mandou doce de mamão verde, soubemos que você e seu pai gostavam muito. Bom, não quero te atrapalhar, tenho que te contar algo logo, vamos lá fora rapidinho?
  O Estevão quer me contar algo? O que mais ele poderia me dizer?
  — Claro, podemos ir sim.
  Pressiono firmemente os lábios assim que pisamos fora de casa e ele sorri para mim.
  — É só que finalmente queria te contar que eu já conhecia a sua condição — Estevão disse e meus lábios se abriram em choque.
  — Não precisa falar nada se não quiser, Luci. Minha tia-avó possuía essa condição também, ela abria a boca e atraía todos ao redor para ouvir o que quer que ela tivesse a dizer. Também há outra pessoa, você não deve conhecer a história, pois ela não é daqui, mas em um reino distante havia uma princesa que falava com os animais e amava muito eles. Ela aparentemente também tinha isso que você tem e que minha tia-avó tinha.
  Makeda se tornou inquieta em meus braços e eu fiz carinho em suas orelhas por pura força do hábito, ela relaxou.
  — Não quero me intrometer e nem ditar regras ou coisas assim, mas o que você tem é muito lindo, eu amava ouvir minha tia-avó falando e ouvir você falando chega a ser melhor do que ouvi-la. Você chama de condição e eu só consigo pensar que isso é um dom. Você cuida dos animais e acalma-os, você fala comigo e eu fico encantado.
  Não sei muito bem como reagir, não sei o que pensar. Ele não sabe tudo sobre como cresci, ele não sabe o quanto isso acabou comigo, o quanto fui isolada por causa disso, ele não sabe. Só contei as partes mais tranquilas sobre a minha condição e a minha vida.
  — Só isso mesmo, Luci, minha flor. Espero que você fique bem e goste do doce.
  Estevão me abraçou rapidamente e foi embora.
  Devagar, pus Makeda no chão e parti rumo à floresta a passos pesados. Bolinhas saiu da minha cabeça com o movimento repentino, mas eu não liguei.
  — Lucília, ele só disse ser um dom, não precisa de tudo isso. — Ouço Makeda falar enquanto tenta acompanhar os meus passos.
  — Odeio isso! Odeio que não posso falar normalmente sem ser vista como uma esquisita ou pior, ser atacada! Ser atacada por bichos enormes com força o suficiente para quebrar os meus braços, como já aconteceu uma vez! Não bastava você, ele também veio com esse papinho! — Me viro e olho para baixo, onde Makeda está.
  — Que bom que está sumindo então! Neste momento, está tão fraco que nem mesmo parece que é você quem está falando.
  Estou incrédula, sem palavras, eu devia estar feliz, mas foi embora tão rápido. Tão fácil assim? Por que foi tão fácil?
  — Não entendo para quê essa cara de espanto, não era isso que você queria? Você não queria mais a sua condição.
  Meu braço se parte mais uma vez, dói muito, meu braço esquerdo queima. O cavalo vem mais uma vez em minha direção, eu estou chorando, a minha mão está tremendo. Mas isso não é real, é?
  Eu só estava brincando, falei muito alto, foi sem querer, mas ele veio. Ele veio tão rápido, ele não parou quando me alcançou, ele passou por cima do meu braço, ele esmagou a minha mão. Minha mãe veio correndo e tinha tanto sangue, ela tentou me remendar, mas não deu tão certo, porque ainda dói. Anos depois ainda dói, eu não gosto dessa parte, eu não gosto do meu braço esquerdo, da minha mão ruim. Dói todos os dias, por que dói tanto?
  Por que não parou de doer? Por que eu não sou normal?
  Por que foi embora tão rápido? Agora sou normal?
  Makeda anda ao meu redor e eu continuo sem saber o que fazer. Ela disse estar sumindo, mas eu não pensei que fosse sumir tão rápido.
  Se sou normal... quem salvará ele?
  — Preciso disso para salvar meu irmão! Como vou salvá-lo sem meu dom?! — Me ajoelho e afundo as mãos nas minhas coxas. Minha mão ruim treme, ela nunca parou de tremer.
  — Agora, você quer o salvar? Quando estava quase matando Estevão com seu olhar, a história era outra.
  — É muito difícil, Makeda! Parece que você não entende! Minha vida inteira foi afetada por isso! Quando eu era bem novinha, eu estava brincando no campo, brincando de boneca, e eu falei muito alto. Um cavalo correu em alta velocidade e me atropelou, ele passou por cima de todo o meu braço esquerdo e quebrou como se fosse um graveto. Meu osso curou, mas é torto, e dói, diariamente dói. E eu sou costureira, então dói mais ainda a cada peça, é o meu trabalho, é assim que sustento a minha casa, não tenho o que fazer, apenas aceitar. Foi isso que meu "dom" me deu, uma dor insuportável, que não cessa! Ter que me esconder atrás de camisas de manga cumprida para que ninguém veja o quanto o meu braço é torto e cheio de cicatrizes! Foi isso o que eu ganhei!
  Meu braço está queimando.
  Makeda para sem palavras por uns segundos.
  — Você só recebe a cruz que pode carregar, se você acha que não aguenta mais, então solte mesmo. Se acha que não aguenta o dom que recebeu, é melhor ficar sem.
  — Mas e o meu irmão?!
  — Não deve estar sofrendo mais do que você, ele aguenta passar a vida inteira como um animal irracional.
  As lágrimas descem do meu rosto de forma rápida, eu destruí as chances do meu irmão de voltar para casa!
  Makeda se aproxima de mim e coloca uma pata em cima de uma das minhas mãos. A que está tremendo.
  — Sabe o que acho de verdade? Você é alguém forte, Lucília. Muito forte. Você se preocupa profundamente com a sua família e quer o melhor para todos, outra pessoa não suportaria o que você suportou, você tem suas qualidades, não seria escolhida se não tivesse... o que você tem é um propósito. Cabe a você decidir se quer seguir ou não. Você tem um futuro brilhante pela frente, Lucília. Nunca deixe de acreditar nisso. Já ouviu a parábola dos talentos? Onde um senhor deu a cada um dos seus servos, segundo a capacidade deles, uma certa quantidade de talentos, moedas. Para que eles pudessem multiplicá-los, quem conseguiu multiplicar, ganhou mais, quem não conseguiu, perdeu o que tinha.
  — O que eu faço? Quero tanto ser útil, meu coração anseia por ser necessária, por ajudar! Quero ajudar o meu irmão, eu quero auxiliar a todos! Mas eu me sinto tão fraca, tão incapaz! Quero tanto acreditar em você, acreditar que consigo...
  Senti Bolinhas se aproximando e se colocando no meu ombro.
  — Lucília, todas as noites que passei naquela casa, você não deixou de orar de joelhos. Faça o que você sempre fez todos os dias. Peça a Deus, peça forças para continuar. Peça o dom de volta.

  Meus olhos se fecham lentamente. Sou fraca, mas Seu poder se aperfeiçoa na minha fraqueza.

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  Não conseguimos achar o Josué, meu irmão.
  Berrei o nome dele por toda a floresta, ele não apareceu.
  — Olhe pelo lado bom, seu dom voltou, fraco, mas voltou. Para ele não sumir de novo, use sem medo, eu estou aqui para te ajudar com qualquer coisa. Pode parecer difícil, ainda mais pelo que aconteceu com você, mas se continuar pensando que sua voz é uma vilã, nada você poderá fazer. Tente controlá-la, lembrando sempre que nada é garantido. E parece que você está esquecendo também de outra parte importante do seu dom, ele funciona em humanos também. Converse com Estevão. Converse com os seus pais.
  Cansada, fraca, fracassada... é assim que eu me sinto ao retornar para casa.
  — Prometo que vou falar mais.
  — Espero que sim.

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  — Estevão! — Cumprimento meu noivo com o maior dos meus sorrisos e o tom mais animado que eu posso.
  — Lucília! — Ele se aproxima de mim na frente da minha casa e eu sinto meus bichinhos se esfregando em minhas pernas. Makeda também está com eles fingindo ser um animalzinho normal.
  Também há vários passarinhos em cima da minha cabeça, não apenas o Bolinhas, Estevão encara eles rapidamente e depois dá uma risada fraca.
  Ele então agarra as minhas mãos nas dele e sorri para mim, porém seu sorriso não alcança os meus olhos.
  — Está tudo bem? — pergunto devagar.
  — Sim. Gostaria de te chamar para passear... aceita?
  — Eu já estava indo sair mesmo, então por mim tudo bem! — respondi alegremente e ele soltou as minhas mãos, fiquei triste com a falta de contato.
  — Ótimo! Adoraria caminhar com você. Onde está a senhora Maria para que ela possa nos acompanhar?
  — Ah! Mamãe tá cuidando do meu pai lá dentro, ele já está bem melhor, porém teve uma crise durante a noite, então ela não quer sair de perto dele. Eu estava saindo para buscar umas ervas para fazer um chá para ele, podemos ir juntos.
  Makeda será nossa acompanhante.
  — Está tudo bem mesmo?
  — Sim. Meu pai é muito forte. Tenho certeza de que logo, logo estará recuperado.
  — Tenho certeza disso.
  Caminhamos juntos e Estevão sorri para Bolinhas e os outros passarinhos que estavam se afagando em minha cabeça. Ele também notou os animais aos nossos pés, nos seguindo, ou melhor, me seguindo.
  Agora que evito não falar, não há como não ter animais me seguindo.
  — O que precisa para o chá do seu pai?
  — Tuba precisa de boldo para sua barriga inchada, tem não muito longe daqui, se eu conseguir achar alecrim também seria ótimo.
  — Perto da orla da floresta, certo? Sei bem onde é. Isso me lembra da vez que comprei camomila para você. Era para o seu pai.
  — Sim. Fiquei muito grata pelo que você fez por mim naquele dia, até hoje sou grata. — Estamos a uma certa distância um do outro, entretanto nossas mãos se tocam por um breve instante, meu coração falta saltar pela boca.
  Um farfalhar em um arbusto distante nos distrai e olhamos naquela direção. Percebo ser uma espécie de tatu, ele parte rumo à floresta.
  — Que Deus te abençoe — murmuro de forma quase inaudível para o tatu.
  — O que disse? — Aparentemente, Estevão me ouviu.
  — Você pode achar bobo, mas gosto de dizer isso para aqueles animais que não consigo cuidar. — Geralmente não dizia, apenas pensava. — Espero que eles encontrem um bom lar e comida de qualidade que possa nutri-los.
  — Não é bobo. É muito fofo, na verdade. Te acho muito fofa, e se não for muito arrogante, espero que me ache fofo também.
  Minha boca se abre e eu não sei bem o que dizer.
  Estevão se abaixa rumo à grama e retira boldo do chão. Nem percebi havermos chegado.
  Antes de se levantar completamente, ele me mostra a palma vazia como se me dissesse para esperar e arranca algumas flores da terra também.
  — Peço que aceite. Esses são para o seu pai e esses são para você. Flores para minha noiva.
  — Muito obrigada! — Pego o que ele está me oferecendo e seguro perto do peito.
  — Espero poder te dar mais flores, mais bonitas e mais perfumadas que essas.
  — Estevão você não precisa.
  — Quero muito, Luz. Eu quero tanto.
  O semblante dele cai.
  — Vou ter que sair. Acontecerá uma guerra, tenho que proteger as terras onde moramos.
  Agora, o meu semblante também cai.
  — Saiba que nosso noivado não está cancelado, vamos nos casar, quando eu voltar nos casaremos. Eu te mandarei cartas, deixarei mensagens para você, para que nunca se esqueça do quanto eu te amo.
  O choro vem facilmente para mim, Estevão me abraça.
  Ele me mandou cartas depois disso.

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  Minha florzinha, por que te chamar assim? Ora, é a minha amada noiva e é a mais bela e a mais perfumada dentre todas as flores que Deus criou. Você é toda formosa, amada minha, e em ti não há defeito algum.

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Minha amada noivaOnde histórias criam vida. Descubra agora