𝙲𝚊𝚙í𝚝𝚞𝚕𝚘 𝟽

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𝚀𝚞𝚊𝚗𝚍𝚘 𝚎𝚞 𝚊𝚌𝚑𝚎𝚒

𖡼.𖤣𖥧𖡼.𖤣𖥧

  Tenho medo do que acontecerá, tenho muito medo.
Meu pai está piorando mais a cada dia e as nossas esperanças estão se esgotando. Porém, ainda não se esgotaram.
  Estevão também parou de me enviar cartas, já faz mais de quatro meses que ele partiu. No início, ele escreveu pelo menos uma carta por semana, elas chegavam para mim no final do mês, juntas.
  Faz quase dois meses que ele não me envia nada. As últimas cartas que ele mandou continuam intocadas, era para eu ter lido quando a família do Estevão viesse nos visitar e contasse o que meu noivo escreveu para eles. Nunca vieram, era para eles terem vindo quase dois meses atrás.
  — Vai ficar tudo bem, tuba. Tenho fé.
  Alimento meu pai com uma grande colherada de pirão e espero que ele acredite em minhas palavras.
  — Sei disso, Luci.
  Ele sorriu.
  Até com tudo dando errado, sei que sempre posso contar com ele, com o apoio dele.
  Mesmo com várias perguntas coçando na minha cabeça, algumas que nunca foram respondidas faz anos.
  — E o Josué? Quer dizer... ele desapareceu e eu realmente não tenho ideia do que pode ter acontecido. Será que levaram ele? — a pergunta quase não saiu.
  Quero ver se há mais alguma pista de onde procurar Josué. Qualquer coisa.
  — Seu irmão fugiu.
  Isso eu nunca ouvi, nunca me disseram isso.
  — Como assim?!
  — Ele tinha noção de que eu estava me tornando mais doente a cada dia, e então sua mãe engravidou de você, e ele imaginava que logo as responsabilidades da casa cairiam sobre ele e ele não queria isso. Eu o ouvi falando com um amigo sobre um tesouro uma vez, muitas riquezas, então Josué sumiu.
  — Por que eu só estou ouvindo sobre isso agora? — Meus olhos se arregalaram e minha vista embaçou rapidamente.
  — Luci, você sempre gostou tanto dele quando criança, eu tinha receio de fazer essa admiração sumir. Tudo sempre foi tão difícil para você, não queria deixar tudo pior. E sinto muito por te magoar com essa notícia, mas já que você cresceu...
  — Tudo bem, tuba. Agora eu sei.

𖡼.𖤣𖥧𖡼.𖤣𖥧

  — Ele cometeu um erro? Eufemismo do século! Meu irmão fugiu. Pegou suas botinhas e nos abandonou! — Entro no meu quarto a passos pesados e me sento na cama.
  — Não sabia o que ele fez, não tinha como eu saber. Só sabia que ele havia cometido um erro. — Makeda se senta ao meu lado.
  — Um tesouro na floresta, vamos ver, é... ele fugiu de casa, roubou um tesouro e então foi castigado por isso. Se ele ia voltar após roubar o tesouro, só Deus sabe. E o que você fez? — Olho para a gata e ela suspira.
  — Eu tinha uma responsabilidade, mas nunca liguei para isso, eu só queria poder, não poder do tipo político, poder mesmo, do tipo mover objetos sem nem tocar neles. Foi assim que consegui a habilidade de fazer os animais dormirem e foi assim que ansiei por mais. Fiz quase o mesmo que o seu irmão e fui castigada por isso.
— Você tentou roubar poder?
  — Sim, fugi e tentei roubar poder, me arrependo amargamente disso.
  — Espero que meu irmão também se arrependa do que ele fez.

𖡼.𖤣𖥧𖡼.𖤣𖥧

— Não vai ler essa carta?
  — Ah! Não, não, prefiro só ficar assim mesmo.
  Coloco a carta lacrada embaixo de todas as outras que estão abertas no meu colo e sorrio para a minha mãe.
  — Você nunca vai abrir nenhuma delas? Só ficará lendo as mais antigas? — Ela aponta para as outras três cartas seladas que estão em minha mesinha. — Você sabe que não precisa abri-las somente na presença dos parentes do Estevão, né? Se eles não estão recebendo mais cartas, a culpa não é sua, se eles não quiseram mais vir, a culpa também não é sua.
  — Eu só...
  — Tem medo do que está escrito nelas?
  — Sim. Foram escritas no mesmo mês, e depois ele não mandou mais nada.
  — Você está orando por ele?
  — Todos os dias. — Minha mãe sorriu para mim.
  Quando de repente, seu sorriso foi cessado por um som estrondoso vindo da sala.
  Corremos do meu quarto com medo do que pode ter acontecido. Foi o barulho de algo batendo no piso.
  Tuba estava tendo uma convulsão.
  Minha mãe foi o auxiliar imediatamente e eu senti vontade de gritar.
  Ele estava sentado na sua cadeira de sempre, a cadeira que já possuía o formato de seu corpo esculpido nela de tanto que ele ficava lá. Minha mãe foi no meu quarto falar comigo e desviou o olhar por alguns instantes. Foi tempo o suficiente para ele cair da cadeira com espasmos.
  Consigo ver o sangue e percebo que ele bateu a cabeça no chão. Isso me desespera ainda mais e eu vou o mais rápido que posso buscar algo para estancar o sangramento.
  Quando consigo pegar um pano na cozinha, vejo que minha mãe já está estancando o sangue com o próprio vestido e ele continua convulsionando. Entrego o pedaço de tecido que peguei para ela, me jogo ao seu lado e tento proteger a cabeça de meu pai de mais danos.
  Tuba não acordou mais.
  Já é o dia do enterro. Minha tia, irmã de meu pai, está fazendo minha pintura facial. Tudo hoje grita luto, eu ainda não consigo acreditar.
  Ninguém pensa que as coisas vão acontecer, em todos os futuros que imaginei, em todos o meu pai estava vivo, quando eu me imaginava casando, meu pai estava sempre lá. E agora nem ele, nem o meu noivo estão aqui.
  — Você comeu? — Makeda me fez uma pergunta.
  Faz horas que enterraram o meu pai. O tempo está se movendo de uma forma estranha. Estou no terreno onde ele cresceu, à beira do rio onde ele nadou, consigo ver as casas de familiares e lugares por onde ele andou. Foi enterrado junto de seus antepassados.
  — Acho que sim.
  — Isso não é resposta. Como espera fazer qualquer coisa assim?
  — Eu não espero.
  — Oh! Luci. Não diga isso, ainda precisa encontrar seu irmão, certo?
  — Será que ainda dá para achar ele? Falando sério agora, Josué nem sabe que estamos procurando por ele.
  — É óbvio que dá, não seja pessimista. Seu irmão está aí em algum lugar, basta procurar o suficiente.
  — Eu não sei não, Makeda. Eu só, você sabe, não sei se tenho forças para falhar. Acho que é mais fácil parar.
  — Não acredito que estou ouvindo isso.
  — Estou cansada, não aguento mais.
  — Sua voz, você sabe que aquilo sumiu de novo, não é?
  — Acho que sim.
  — Lucília, seu tio vai nos levar para casa de carroça antes que anoiteça.
  Me viro e observo minha mãe, parece que ela não dorme há dias, mas só faz um dia que meu pai se foi e nós viemos para cá.
  — Tudo bem, mãe.
  Peguei Makeda no colo e andei até ela.
  A minha casa parece tão estranha e vazia, mas os móveis estão todos aqui, nada está fora do lugar. Todas as roupas do meu pai permanecem no armário, todas branquinhas, porque ele dizia que essa cor favorecia seu tom de pele escuro. Seu sabão favorito continua no banheiro, o feito pela minha mãe, nunca o que foi comprado. Tudo parece tão normal, tão comum.
  — Luci. Está faltando alguém, dizendo Luci. Ele nunca mais dirá. E nunca mais se sentará aqui. — Coloco minhas mãos na cadeira e finjo que ele não foi embora.
  Mas não finjo porque estou ficando louca e estou delirando, não, finjo porque essa é a cadeira dele, ou melhor, lembro que essa é a cadeira dele, tenho lembranças dele nesse lugar.
  E tento, juro que tento, não pensar que a morte dele aconteceu aqui. Quero pensar só nos momentos bons. Muitos podem dizer que faz pouco tempo que ele se foi e que não era para eu já estar assim, com tanta saudade, mas discordo.
  Nos primeiros dias a saudade não é menor, a saudade é imensa, só que depois ela fica maior ainda, aí pode dar a impressão de que no começo você não sentia tanta falta.
  Mas, pelo menos de uma coisa tenho certeza, meu tuba está com Deus.

Minha amada noivaOnde histórias criam vida. Descubra agora