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2023.

O alarme tocou especificamente às 06:15, como todos os outros dias da semana. Mas, diferente dos outros dias, Ana sentiu que não seria um dia fácil para ela. Constatou isso assim que Manteiga a lambeu na boca e tinha um cheiro esquisito. Lambê-la não era o grande problema, na verdade, ela já havia se acostumado com os beijos matinais. O problema mesmo estava no fato de que ele parecia ter comido uma porção de lixo do dia anterior e decidido comunicá-la com uma nojenta lambida na cara.

Isso foi comprovado quando, minutos depois, Ana estava perambulando pela sua cozinha,  encontrando o saco de lixo perfurado e um meliante olhando para ela enquanto abanava o rabo. Cretino.

– Cachorro mau. – O repreendeu. Manteiga parecia não se importar com a bronca.  – Muito mal! - Repetiu, um pouco mais séria, mas sem grandes resultados.

Suspirou frustrada.

Que ótima maneira de começar o dia. E aparentemente, era só o começo.

Porque, vejamos, o seu carro enguiçou e foi preciso chamar o seguro para levá-lo ao mecânico. Isso custou algumas rugas de estresse e uma bela quantia do seu dinheiro, além de atraso no trabalho e bronca da chefe (que não estava nem um pouco a fim de ouvir suas justificativas). Na verdade, ninguém estava. Nem mesmo os alunos que em teoria deveriam estar na sala, mas não estavam. Sem alunos e nem instrumentos. Ana precisou respirar cinco (ou quinze vezes) antes de caminhar a passos duros para sala dos professores. Não tinha ninguém ali. E nem nas demais salas acopladas naquele andar.

Aquele dia estava esquisito. Já passavam das oito e nenhuma sala parecia preenchida. Ana pegou o celular do bolso da frente da sua calça jeans e abriu a conversa de Vitória, sua melhor amiga e professora de teatro do colégio.

Ana c.
Por acaso os frequentadores desse colégio foram dispensados e eu não estou sabendo?
Vitorinha
a culpa é toda sua
Ana c.
???????
Vitorinha
estamos no anfiteatro. professores e alunos.
Ana c.
anfiteatro? por quê? e por que não fui chamada?
Vitorinha
que dia é hoje ana?

Ana desceu a barra de notificação para checar o dia e tudo pareceu como um click no cérebro de Ana. Era óbvio! Como ela pôde esquecer?

Na verdade, esquecer era tudo o que ela estivera tentando fazer desde sempre. Ela odiava dia 10, especificamente 10 de novembro. Os amigos tentaram avisá-la durante todas aquelas semanas, para que ela se preparasse.  Vitória era sempre incisiva, Rubel parecia uma irritante contagem regressiva ambulante e Paulinho exercia o papel de pai chato, sempre a mercê de repreende-la todas as vezes que ela tentava mudar o assunto, tão irritante quanto a contagem regressiva.

– Será que a gente pode falar sobre isso agora?  – Indagou Vitória.

– Faltam uma semana. –  Rubel avisou, colocando sua bandeja do almoço na mesa em que os amigos estavam sentados, se acomodando ao lado de Vitória.

Todos estavam de frente para Ana, como uma grande intervenção. Era assim que eles tentavam chamar: Intervenção das sete chaves.

– Vocês sabiam que a Vitória tá de conversinha com a dona daquela livraria que a gente gosta?

–  Ana Clara. –  Paulinho repreendeu, olhando-a sério. Como todas as irritantes vezes.

Uma risada anasalada escapa dos lábios de Ana. Ela deveria ter prestado mais atenção naquela maldita contagem regressiva, afinal. 

– O que diabos ainda está fazendo aqui, Ana Clara?

Ana quase caiu de susto.

– O que?

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