Capítulo 6

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O dia amanheceu chuvoso, e Sophia se surpreendeu ao perceber que realmente era possível chover no inferno. A visão da chuva caindo na janela, como lágrimas do céu, parecia quase poética em um lugar tão terrivelmente frio e apático. De certo modo, não se espantou tanto; se alguém lhe dissesse que ali também nevava, não teria dificuldades em acreditar.

Sentada na beira da cama, envolta em um roupão de seda preto que se ajustava perfeitamente ao seu corpo, Sophia se perguntou o que tudo aquilo realmente significava. As roupas, os objetos, tudo parecia meticulosamente preparado para ela, o que só tornava a situação mais estranha. Levantou-se com calma, trocando o roupão por uma blusa e saia da mesma cor, e lançou um olhar rápido ao espelho.

Seus pensamentos foram interrompidos por suaves batidas na porta, quebrando a monotonia silenciosa daquele lugar.

— O desjejum será servido em breve, minha senhora — uma voz feminina anunciou do lado de fora.

— Senhora? — A palavra soou estranha nos seus ouvidos. Não tinha mais que 28 anos. Intrigada, caminhou até a porta e a abriu, deparando-se com a mesma serva de ontem, que, ao ver Sophia, encolheu-se, como se estivesse à mercê de um julgamento.

— Não precisa de formalidades — ela pediu, tentando desmistificar a situação — Pode me chamar apenas de Sophia.

A garota a encarou, seus olhos arregalados, como se ela tivesse cometido um crime ao pronunciar aquelas palavras.

— Por favor, me perdoe... mas não posso me referir à dama do meu senhor com tanta informalidade.

— Dama? — Sophia quis rir, questionando o que diabos estavam pensando em relação a eles dois.

— Sim, senhora — A serva fez uma reverência leve, antes de continuar — O senhor Beelzebub nunca havia trazido uma dama para seus domínios. Você é a primeira mulher a pisar aqui em séculos, para fins não comerciais.

— Isso soa tão errado — ela murmurou, ajeitando os cabelos longos, sentindo-se um tanto ridícula — Meu Deus, isso faz com que eu me sinta... uma puta.

A serva arregalou os olhos e se curvou rapidamente, um pedido desesperado de desculpas estampado em seu rosto — Desculpe, minha senhora! Eu não queria me referir a você como uma mera meretriz. Perdoe-me se passei essa impressão.

A jovem se levantou, seus olhos ainda assustados pelo erro que havia cometido. Se Beelzebub soubesse, aquilo seria punido. E os castigos do senhor do submundo eram conhecidos por serem rigorosos.

Ao chegarem à sala de jantar, a mesa estava posta com o desjejum, tão farta quanto o jantar da noite anterior. A única diferença era que Beelzebub estava ali, sentado em sua cadeira, de cabeça baixa, mergulhado em seus próprios pensamentos. Ele mal percebeu quando Sophia se aproximou.

Beelzebub tomava um líquido escuro e vermelho em uma taça. Seus olhos estavam pesados, com olheiras mais pronunciadas do que o habitual. A boca seca e os dedos entrelaçados sob o queixo indicavam um cansaço profundo. O cabelo, mais rebelde que o normal, acentuava seu estado abatido. Sophia se sentou ao lado dele, analisando as feições ainda mais cansadas do demônio.

— Está tudo bem? — ela perguntou, percebendo que ele apenas moveu os olhos em sua direção.

Beelzebub se endireitou na cadeira, como se finalmente tomasse consciência da presença dela — Está aqui há muito tempo? — ele indagou, e a viu negar.

— Acabei de chegar — ela murmurou, servindo-se de um pouco de comida — O que estava bebendo? — perguntou curiosa, notando que aquilo estava longe de ser café.

— Vinho — ele sussurrou, sorvendo o último gole da taça.

— A essa hora? — Ela arqueou uma sobrancelha, e ele soltou uma risada suave.

— Acho que você tem outras coisas com as quais se preocupar.

Sophia franziu a testa, um sorriso irônico brincando em seus lábios

— Você estaria certo, se eu não estivesse enfiada no submundo com você.

— Te desagrada tanto assim minha presença? — A pergunta dele foi direta.

Ela o encarou, estaria mentindo se dissesse que sim, mas a verdade era que, de forma estranha, Beelzebub não a desagradava. Havia uma solidão palpável nele, como se a vida tivesse sido drenada de sua alma, deixando para trás apenas uma casca vazia.

— Não — respondeu, simples e firme, e pôde ver os ombros dele relaxarem — Mas você deveria comer algo.

Ele deu um meio sorriso, tocado pela insistência dela, que de certo modo o fazia lembrar de antigos amigos.

— Você parece mais abatido do que o habitual — comentou, fazendo com que ele parasse de comer para olhá-la nos olhos.

— Tenho muitos pesadelos — ele confessou.

"Mas não foi com isso que você sonhou na noite passada... Se deleitando com o corpo da garota... isso não é um pesadelo?" A voz de Satan ecoou em sua mente, provocativa e sombria. "Se você cedesse ao meu controle, poderia se livrar desse medo patético, garotinho frágil. Eu resolveria todos os seus desejos, saciaria sua fome por poder e prazer. Tudo o que você precisa fazer é se render a mim. Por que lutar contra sua verdadeira natureza?"

Beelzebub fechou o punho, batendo-o na mesa em insatisfação. Sophia o fitou, o garfo a poucos centímetros de sua boca, paralisada pela explosão repentina dele.

— Me desculpe — ele murmurou, antes de se retirar, indo em direção aos seus aposentos.

— Mas que caralhos... — ela sussurrou, após se encontrar sozinha no local. Parte dela sabia que deveria deixá-lo lidar com seus problemas sozinho, mas a outra parte insistia que, se ele não havia resolvido em séculos de existência, não seria agora que conseguiria enfrentar aquele tormento.

Demorou para que ela finalmente encontrasse o quarto dele; as portas eram todas iguais, assim como os corredores daquele maldito castelo. Quando chegou, não se deu o trabalho de bater, sentindo que não era uma serva e que a formalidade era desnecessária.

Ao abrir a porta, encontrou Beelzebub deitado em sua cama, encolhido em posição fetal, com as mãos na cabeça. Ele murmurava em uma língua que Sophia jamais ouvira, balançando o corpo numa tentativa desesperada de se acalmar. Pobre garoto, pensou, amaldiçoado por sua própria existência. Ele estava vulnerável; o Deus do submundo, o pecado da gula, estava sendo derrotado por seus próprios pensamentos. Seu maior inimigo, no fim, era ele mesmo.

Sophia sentou-se frente a ele, mordendo a bochecha inferior. Com um impulso, levou a mão em direção aos cabelos levemente úmidos do demônio e o acariciou. O gesto terno fez Beelzebub abrir os olhos, fitando-a diretamente.

— O que faz aqui? — ele murmurou, a voz perturbada ao vê-la ali.

— Shiii — ela sussurrou, utilizando o mesmo tom baixo que ele — Eu vou cuidar de você — Um sorriso suave brotou em seus lábios, e aquilo fez o coração de Beelzebub errar algumas batidas. O corpo, já quente, parecia se aquecer ainda mais, como se brasas estivessem queimando seu rosto.

Ele fechou os olhos novamente, apreciando o carinho que recebia em seus cabelos. Aquilo era realmente relaxante, um ato tão trivial e mundano que o demônio jamais imaginou que teria algum efeito em si, mas estava errado. Sentia seu corpo mais leve, relaxado, como se pudesse dormir recebendo tal afeto gentil. Os olhos já fechados pareciam ainda mais pesados, como se manter acordado fosse o ato mais difícil de se fazer. O sono se aproximava devagar, mas tão rapidamente que o fez questionar se realmente podia se dar ao luxo de descansar.

Ele tinha medo de não conseguir, medo de que seus pesadelos o amaldiçoassem novamente com cenas aterrorizantes de um futuro que parecia cada vez mais próximo e inevitável. Talvez tê-la ali, mantendo-a ao seu lado, tivesse sido o maior de seus pecados.

Eco dos Pecados - Beelzebub +18Onde histórias criam vida. Descubra agora