85 dias.

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NA SEXTA-FEIRA SEGUINTE, estou jogando o tipo de Tetris de que eu menos gosto no balcão de informações: escolhendo quais lançamentos de outono comprar para nossa biblioteca. Reorganizo e revejo a prioridade de cada um, cortando um título após o outro da lista até o custo se encaixar no nosso orçamento. Toda vez que vou tirar um livro da lista, um rosto diferente surge na minha mente, da criança ou crianças para quem escolhi especificamente aquele exemplar.

Um livro ilustrado de super-herói para Arham. Outro sobre sereias para Gabby Esteves, de oito anos, que já começa a ler sozinha. Uma fantasia juvenil crossover, que me lembra da primeira vez que li Philip Pullman, para Maya, uma pré-adolescente que usa aparelho nos dentes, tem um adesivo dos Smiths na mochila e um nível de leitura tão avançado para a idade que já começou a fazer indicações para mim.

Maya é bem tímida, levei meses para conseguir fazê-la responder às minhas tentativas de papo sobre livros (o único tipo de conversa superficial que consigo começar). Mas agora ela é capaz de passar quarenta minutos falando animada sobre algum livro que nós duas lemos e amamos, como em um clube de leitura informal com dois membros. Venho tentando convencê-la a se juntar a um dos grupos de leitura para adolescentes, mas ela me informou com toda a educação que não gosta de "atividades em grupo" e que "é mais do tipo independente".

Basicamente, Maya sou eu aos doze anos, se eu fosse novecentas vezes mais descolada — assim como eu, ela é  filha única única de uma mãe solo muito legal, com uma queda por bandas britânicas de rock gótico dos anos 80. Durante o ano escolar, Maya percorre sozinha a curta distância entre a escola secundária e a biblioteca, e a mãe passa para pegá-la quando termina seu turno como assistente jurídica.

A nova fantasia de capa dura que escolhi para ela é o livro mais caro da lista, mas não consigo suportar a ideia de cortá-lo.

Costumo conversar sobre esse tipo de coisa com Harvey, o gerente dessa  filial, mas ele saiu mais cedo hoje para ir à formatura da filha mais nova em medicina (as outras duas já são médicas — ao que parece, o homem criou um exército de filhas bem sucedidas academicamente).

No escritório que todos compartilhamos, a bibliotecária que atende os adultos, Samantha Árias, está ao telefone, e a porta fechada reduz suas palavras a um murmúrio sem entonação.

Sobre a mesa, meu celular mostra uma notificação de Nia. Sinto um frio de expectativa na barriga, mas logo desanimo ao ver que, em vez de uma mensagem, ou mesmo um comentário, ela só curtiu minha foto mais recente.

A foto em que pareço estar prestes a lamber a lateral do rosto de Kara, que paira acima de mim, o braço passado ao redor do meu peito.

Entro no perfil de Nia e me arrependo na mesma hora. Ela usa as redes sociais com tão pouca frequência quanto eu, o que significa que ali, bem no alto, três fotos antes da mais recente, está uma foto dela e de Brainy comigo e com James na cervejaria Chill Coast, na última visita que eles nos fizeram cerveja é a única coisa que faz James sair da dieta low carb.

Eu pessoalmente detesto cerveja. É óbvio que Lucy adora. Ela é uma fantasia ambulante, e eu sou o retrato da bibliotecária clássica.

De trás da porta do escritório escuto uma mistura de gritinho com gemido de frustração. Não é exatamente um grito, mas um som alto o bastante para fazer os adolescentes que estão jogando na área dos computadores se virarem ao mesmo tempo para ver o que está acontecendo.

— Tudo bem, está tudo bem! — digo a eles com um aceno.

Atrás de mim, a porta se abre e Samantha, sai de maneira intempestiva.

— Nunca faça amizade com mães — me diz ela, antes de se dirigir à sua cadeira giratória.

— Você é mãe — lembro.

Nem te conto - SupercorpOnde histórias criam vida. Descubra agora