Não foi necessário sequer um ano para que o amor, durante tanto tempo direcionado para sua falecida irmã, fosse derramado sobre ele de uma vez só. Amor esse que o nutriu e fortificou, para então retornar com força em dobro, tamanha a intimidade do povo com seu futuro rei.

E como o povo ficou exultante! Como criaram canções e poemas sobre seus cabelos amarelos, embora antes fossem dourados; e como lhe invejaram o azul dos olhos, embora muitos jurem que antes eram de um verde cintilante!

— Mas de que isso importa? — pergunta um dos foliões, uma caneca de cerveja em mãos — E daí se o pênis dele ficou verde e brotou um rabo de macaco em sua bunda? A família real está em paz!

— Mas... a Ba... — ele responde, secando a garganta — O demônio que muda...

— Temos bebida e comida! — esbraveja o outro homem — Pare de falar besteiras e se divirta!

E se divertiram. Se divertiram pelo resto da noite como se divertiram nos doze anos anteriores, a contar do dia em que o príncipe Lúminer, quando pela primeira vez visitou seus súditos, deu a eles nada que não uma grande decepção.

— Viva o príncipe Lúminer — agora ecoam, homens e mulheres de barriga cheia — Viva o nosso futuro rei!

***

Sobre os vestígios da festança, um dos foliões repousa embriagado pelas emoções, e tudo o que seu olfato absorve é o cheiro da bebida misturado com o odor de seu corpo. Um espasmo ligeiro lhe percorre os músculos antes que finalmente abra os olhos, perguntando-se onde e com quem está; até que, aos poucos, as lembranças vão assentando como tinta, e o sorriso volta a brotar em seu rosto.

Forçando as mãos sobre o chão, o homem consegue fazer seu corpo gordo finalmente se sentar, e descansa as costas contra a parede. Conforme sua visão vai deixando de ser turva, as cores da taverna começam a adotar suas tonalidades naturais, e o o homem suspira; pois o que mais além da bebida pode deixar o seu arredor com um aspecto agradável? Para que, passados seus efeitos como véu que se levanta, finalmente se revele todas as imperfeições e a podridão que o rodeiam?

O homem gordo conhece essa sensação. Ela existe e é natural. Mas sobretudo nos últimos anos, algo como um cheiro indiscernível paira no ar. Ele não sabe de onde vem, não sabe o que o causa, mas, ainda assim, sente que há algo de errado.
Movendo a cabeça para um dos lados, talvez em busca de uma garrafa, seus olhos se deparam com os de outro homem do outro lado da taverna, também sentado no chão e com as costas contra a parede. Seu olhar é um daqueles que parece enxergar algo em nós; o tipo de olhar que nos é dirigido quando percebemos algo, e pensando termos sido os únicos a perceber tal coisa, nos surpreendemos ao nos depararmos com isso: dois olhos parados e voltados para nosso interior;

Talvez tenham sido segundos, ou, quem sabe, longos minutos, mas fato é que, no tempo em que ambos os homens se entreolharam, algo como um sussurro fora feito; e apenas bom tempo depois o homem gordo traduziria tal sussurro em três palavras.

— É tudo mentira.

— O que?! — pergunta o homem gordo, franzindo agressivamente o cenho — O que você falou?

O homem do outro lado da taverna parece ressonar, pois seus olhos se fecharam após fitar o chão; e o homem gordo, tomado por sabe-se lá que desconforto, procura algo que possa usar. Ele apanha então uma rolha de madeira, e sem sequer perder tempo ajustando a mira, atira de uma vez, acertando em cheio a cabeça do homem.

— Hum? — pergunta aquele que dormia — O que?!

— O que você disse aí?

— O que? — pergunta outra vez, confuso — Mas eu não disse nada.

Príncipe LúminerOnde histórias criam vida. Descubra agora