Eu me encaro no espelho do banheiro, e um rosto cansado me devolve o olhar. As olheiras profundas denunciam as noites mal dormidas, consequência da ansiedade que tem me consumido e da busca incessante por uma solução para meus problemas. Para os outros, tudo parece tão simples, como se houvesse um manual de instruções que eu não consigo decifrar. Mas, para mim, a realidade é outra. Desde que minha mãe se foi, cada dia tem sido uma batalha, e a necessidade de me reerguer sozinha, sem ter aquela voz reconfortante que sempre soube o que dizer, tornou tudo mais difícil. Minhas amigas estão lá, é claro, mas elas têm suas próprias tempestades para enfrentar.
Suspiro e desvio o olhar do reflexo, sentindo um nó se formar na garganta. Abro a gaveta e pego a caixa de tinta e o pente junto com a vasilha. A raiz escura dos meus cabelos está evidente, um lembrete do tempo que passou desde a última vez que pintei. Penso em simplesmente mudar para o preto; talvez seja mais fácil, menos trabalhoso do que manter o vermelho sempre vivo. Mas, ao mesmo tempo, sinto que deixar o vermelho para trás é como abandonar parte de mim, uma versão que lutei para construir em meio ao caos.
Com um movimento quase automático, despejo a tinta no pote e divido meus cabelos ao meio, sentindo a textura áspera dos fios sob os dedos. O cheiro químico da tinta invade o ar, trazendo uma sensação agridoce. Enquanto aplico a tinta, observo as mechas vermelhas se rendendo ao tom escuro, como se fossem um reflexo da minha própria tentativa de mudar, de seguir em frente. Espero alguns minutos para a tinta pegar antes de entrar no banho, deixando a água quente escorrer pelo meu corpo e relaxar os músculos tensos pela preocupação. Ao sair, me visto com uma blusa de lã branca que coça levemente na pele. Um calafrio percorre meu corpo, uma mistura do ar frio e da estranha sensação. Eu sabia que à noite iria chover — o cheiro de terra molhada já permeia o ar —e, de certa forma, a iminente tempestade combina com o turbilhão de pensamentos em minha cabeça.
Enquanto penteio meus cabelos molhados, aproveito para mandar mensagens para as meninas, perguntando se chegaram bem em casa depois da nossa conversa no café. Mal consigo esconder meu receio de ir morar em Salém. “Cuidar” de uma pessoa cega é uma grande responsabilidade, mas a chance de ter um teto e continuar com meus estudos é tentadora. Tento me convencer de que, afinal, quem não arisca não petisca, certo?
Apesar disso, não consigo deixar de questionar a estranha dinâmica da família da minha amiga. Por que Winona mora aqui na cidade, enquanto seu irmão cego vive sozinho em Salém? Será que é um assunto delicado? Espero que ela me conte quando formos amanhã. Coloco a curiosidade de lado e decido focar na tarefa mais imediata: arrumar minhas coisas. Felizmente, não tenho muito para embalar.
Com um suspiro resignado, puxo duas malas empoeiradas debaixo da cama e começo a esvaziar o guarda-roupa. As roupas deslizam entre meus dedos enquanto as dobro. A realidade de que tudo o que possuo cabe em duas malas é ao mesmo tempo libertadora e triste. Espero que essa mudança seja exatamente o que preciso para recomeçar
Envio uma mensagem ao dono do apartamento, avisando que sairei amanhã e que deixarei as chaves com o porteiro. Ao terminar, meu estômago ronca de fome e caminho até a cozinha. Pego uma panela, coloco água para ferver e procuro nos armários os lamens que comprei em uma feira cultural dias atrás – aqueles de potinhos com o Naruto e o Sasuke estampados. Parece meio infantil, mas, por algum motivo, esss potinhos me trazem conforto.
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A Casa Dos Segredos Silenciosos.
Misterio / SuspensoSinopse: Desesperada por um emprego, Valen aceita uma oferta quase irrecusável: cuidar do irmão cego de sua amiga em um casarão que sussurra lendas de tragédias passadas. Assim que entra naquela residência sombria, ela se vê mergulhada em um mundo o...