Seis.

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Ignorei as mensagens de Cidinha perguntado que horas eu ia voltar ou se ia dormir em casa. Afinal, A mãe de Ana já tinha avisado que eu dormiria por lá. Era engraçado como Tia Marta me respirava mais do que minha própria mãe. De manhã cedinho, Lívia me chamou pra descer o morro e ir no centro, ele tinha que comprar algumas coisas e eu também precisava ir numa papelaria. Peguei mina bolsa, porque quando voltássemos, eu iria pra casa.

— E o encceja?

— O resultado sai essa semana, mas eu acho que passei, amiga. Tô confiante.

— Que bom, Livia. Me dá um alívio danado saber disso.

— Só é meio tarde, né? Eu já tô com 24 anos, olha o tempo que eu perdi.

— Antes tarde do que nunca, amiga.

— Nem me fale — minha amiga suspirou enquanto entravamos no ônibus pra ir até o terminal. — tava cansada de ver minha mãe jogar na minha cara os feitos de todos os meus irmãos e eu continuar a mesma fracassada.

— É compreensível, né, amiga? Mas agora cê tá indo atrás de fazer sua vida e é isso que importa.

— Não vou mentir, Nanda. Passo a maior parte do tempo lutando contra o impulso de desistir, mas não posso.

— Não mesmo, é uma coisa que só vai te beneficiar! — encarei minha amiga enquanto passava os braços pelos ombros dela. — nunca é tarde demais, sua maluca.

— Eu sei. — pude ver os olhos marejados da minha amiga e a apertei contra mim. — acho que ele ter sido preso foi o gás que faltava na minha vida. Toda a adolescência reprimida, todos os "não" me fizeram agir como uma jovem impulso. Não passava pela minha cabeça que eu tava jogando minha vida fora... Só senti quando a água bateu na minha bunda.

— Você nunca me explicou direito o que aconteceu, quer falar sobre isso?

Anos atrás, Ana Lívia se envolveu com um traficante. E até pouco tempo atrás não sabíamos disso. Só ficamos a par de tudo porque minha amiga quase foi presa e seu romance também tinha sido, até hoje, quem ele era ou de qual morro ele era, é um verdadeiro mistério. Ana Lívia nunca quis falar muito sobre isso.

— Fui ingênua, Nanda. E tive muita sorte, ele tá preso, mas não exige que eu vá ve-lo, não exige fidelidade... Nosso relacionamento realmente acabou, mas eu sei que esse não é um privilégio que muitas tem, sabe? É por isso que eu quis mudar de vida, fui atrás de concluir meu ensino médio, tô voltando atrás pra fazer meu curso técnico... Acho que Deus me deu outra chance, nega. E sou muito grata por isso. Só quero dar algum orgulho pra minha mãe, eu não quero ser a ovelha negra, a única que deu certo... Ela fala tão bem de você, sabe? Mas isso não me deixou com inveja, sei dos meus erros, sei que tô pagando por eles, e isso me motivou a continuar.

— Odeio isso de comparação — revirei os olhos pra minha amiga. Nossa atenção foi pro celular na minha bolsa — Tô aqui para o que cê precisar, dicas, conselho... Ainda não tenho contatos, mas assim que tiver, faço questão de te ajudar a conseguir um emprego. No que depender de mim, sem oportunidades você não fica.

— Você parece político falando, credo! — minha amiga limpou uma lágrima e continuou: — a parte mais difícil tem sido tentar conter o impulso de usar droga, sabe, amiga? Mas gostava de usar quando não tava me sentindo bem, era o que me confortava... Eu me sentia vazia, triste e aí, cheirar me aliviava, mas agora...

— Agora você tem que focar em sentir tudo isso, focar em deixar seus sentimentos fluírem e lidar com eles sem nenhuma droga.

— É difícil com uma mãe narcisista em casa.

— Você sabe que as portas lá de casa estão abertas se precisar, a minha mãe nunca te desfez pelas suas escolhas.

Ana Lívia negou veemência e apontou pro celular na minha mão. 

— Eu largo a vida de dar pra piroca criminosa e você entra nela, Maria Fernanda?

— Não seja idiota. Isso foi coisa do Proeza — menti, porque minha amiga não precisava saber que o chefe do crime organizado tinha me presenteado com coisas caras da Apple. — Gorilla tava lá bem no dia que eu fui assaltada, isso deve ter dedo dele também.

— Aquele seu tio gostoso...

— Porca!
No restante do caminho, Lívia e eu fomos colocando o papo em dia. Minha amiga tinha se afastado drasticamente. Eu nunca a julguei ou senti mágoa. Sempre soube como a pressão pra ser igual aos irmãos era pesada por parte da mãe dela, aí juntava o fato de que sua mãe a comparava comigo, com nossos amigos de escola... No fim, ela terminava ouvindo todo tipo de merda.

Com certeza, as palavras negativas e comparação contribuíram para ela fazer todo tipo de atrocidade contra si mesma, desde se envolver com traficante até cheirar e beber litros e litros de álcool. Mas agora Ana Lívia parecia disposta e eu torcia pra minha amiga conseguir sair dessa, pra se achar no que gostava de fazer e sua vida avançar de vez.

O foco do EDETEN não era apenas os presos. Na verdade, eu o via mais como um "teste". Sabemos que não dá simplesmente pra esperar melhoras na criminalidade só ressocializando pessoas que já estão presas, não é? É uma questão muito mais complexa e que se você não encontrar a raiz do problema, você não resolve nada.

Digo e repito: os mais afetados com isso eramos nós, os periféricos, pretos e sem nenhuma oportunidade decente de vida digna!

As pessoas acham que um pai de família tendo todo tipo de propostas profissionais negadas por causa de suas origens, da sua cor e do seu status social, vai dizer não ao criminoso que se aproximou dele num momento de fragilidade prometendo tudo o que ele precisava: dinheiro.

Obviamente tem pessoas que recusam, que romntizam todo o sofrimento que passaram pra permanecer na dignidade, mas nem todas as mentes são iguais, nem todos suportam os mesmos limites. Não é uma questão de caráter, é um problema social. A criança que cresceu tendo como exemplos os bandidos de onde morava, que cresceu ouvindo piadas maldosas na escola a respeito de quem era, que abandonou os estudos por conta de tudo o que ouvia, dificilmente ia achar que tinha outra alternativa pra ela além do crime.

Futuramente, o EDETEN queria se expandir exatamente pra essas comunidades, dar uma oportunidade as crianças de lá. Tinha muita vontade de que fosse o Leopoldina, ou quantas outras conseguissem, o importante mesmo era dar outras alternativas as nossas crianças!

Tudo isso me dava força para continuar e não dar atenção as importunações de Baco, Proeza e nenhum outro. Podia lutar e ajudar cada um a se estabelecer socialmente, mas Baco tinha o dobro do meu tamanho e a sua fama não contribuía em nada para me tranquilizar.

Enfim, a hipocrisia!

— Tá pensando no bandidão? — Lívia me cutucou e riu debochada. Revirei meus olhos em resposta.

Sim, era incrível como Baco sempre terminava aparecendo em qualquer pensamento meu. Ele era bonito, ele era atraente e tudo o que eu mais temia: um traficante frio, sem coração e extremamente cruel. Minha mãe tinha razão em temer que eu me envolvesse com algum bandido, dado o histórico de todas as meninas de onde moravamos.

Imagina se ela imaginasse que eu me envolvia com um bandido feito Baco? Isso jamais aconteceria!

AMOR EM CADEADO [degustação]Onde histórias criam vida. Descubra agora