O cheiro de livros empoeirados sempre foi o favorito de Calleb, pelo menos desde que se lembrava. A pequena biblioteca centenária de Nova York tornava-se cada vez mais silenciosa a cada ano. As pessoas não tinham mais sede de literatura, principalmente dos clássicos, agora vistos como antiquados e obsoletos.
Ruth... Calleb evitava pensar nesse nome sempre que podia, especialmente durante atividades prazerosas como a leitura. Mas naquele dia, estava mais difícil do que de costume. Talvez fosse o ambiente. Foi ali que a conheceu. A balconista de olhos grandes, pele suave e óculos de lentes grossas. Ela não era seu tipo, mas algo nele foi atraído por ela naquele dia. Namoraram, casaram, quase tiveram um filho... E então, veio a morte, a dor, a destruição. Foi culpa dele, de mais ninguém. "Se não pagar, vamos tirar o que você mais ama", haviam dito. Ele não sabia, na época, que o que mais amava era ela e o filho que não chegaria a nascer.
Calleb se levantou e caminhou em direção à saída. Um esbarrão, e livros de Edgar Allan Poe caíram no chão. O som o fez estremecer. Ele olhou para quem havia trombado. Uma jovem de pele macia, cabelos negros como a noite, olhos grandes, como jabuticabas - sua fruta favorita. Ruth...
Sem pensar, Calleb agarrou o braço da moça:
- Ruth, é você?Podia ser uma alucinação. A pressão, o luto... talvez sua mente estivesse brincando com ele.
- Desculpe, acho que me confundiu com outra pessoa - respondeu ela, recolhendo os livros e seguindo para a prateleira 8A.Ela só podia estar mentindo. Talvez estivesse sendo vigiada, assim como ele. Ela fingia não o conhecer, era isso. Ela era Ruth.
Do lado de fora, uma van preta estava estacionada perto de onde ele estava. Eles o vigiavam. Tinha que agir como se não tivesse visto nada. Se fosse Ruth, ela estaria em perigo. Decidiu se afastar, mas não muito, o suficiente para não levantar suspeitas.
Desde a morte de sua esposa, Calleb estava sempre sendo observado. A van aparecia em dias alternados, às vezes o seguia o dia inteiro. Após algumas horas, o veículo negro partiu, satisfeito de que nada suspeito havia acontecido. Minutos depois, a jovem saiu, agora com exemplares de Baudelaire nas mãos.
Calleb a seguiu. Mesmo que ela não fosse Ruth, seus olhos... aqueles olhos de jabuticaba apetitosos, não podiam mentir.
- Minha querida Ruth, preciso salvá-la.Calleb já não sabia distinguir realidade de ilusão, caminhando por uma linha tênue entre a loucura e a sanidade. O que a morte pode fazer a uma pessoa? Até onde alguém pode ir para diminuir a própria culpa?
O caminho dela a levou até a Universidade de Nova York. Agora fazia sentido o interesse por livros, talvez ela cursasse literatura ou algo relacionado. Jornalismo? Letras? Ele precisava descobrir tudo sobre essa nova Ruth. Ela preencheria seu vazio existencial e apagaria sua culpa.
Decidiu esperar. Esperou até o anoitecer, quando a viu saindo com um grupo de amigos. Eles se dispersaram nas esquinas próximas. Agora, era apenas ele atrás e ela à frente, como se ele e Ruth andassem juntos novamente pelas ruas da cidade, aproveitando o ar fresco.
Uma lembrança vaga lhe veio à mente: o dia em que a acompanhou até em casa e a beijou em frente ao portão, anos antes do casamento.
A jovem entrou em uma casa modesta, feita de madeira, com uma grande janela que dava para seu quarto. Calleb precisava ficar por perto. Ele não podia deixá-los matar essa Ruth. Não dessa vez.
Lia, no entanto, não percebeu que Calleb a seguiu durante todo o dia. Estava ocupada demais com seus próprios pensamentos, mergulhada nas preocupações sobre o que escreveria para sua tese de doutorado. O tema que tinha em mente era ousado: o impacto da literatura clássica na sociedade pós-inteligência artificial. Uma ideia desafiadora, mas com potencial de se tornar um artigo relevante, quem sabe até ganhar espaço em grandes publicações.
Mas, além do doutorado, outra questão ocupava sua mente: a recente briga com Ethan, seu namorado. Na verdade, eles brigavam com frequência, quase por qualquer coisa. Só que dessa vez foi mais sério. Ela havia devolvido a aliança. Um quase término. Contudo, ainda havia espaço para consertar as coisas, e ela sabia disso.
Naquela noite, Lia ficou acordada até a madrugada, tentando em vão escrever algo para sua tese. Cada vez que seus dedos tocavam o teclado, as palavras pareciam desaparecer. Era sempre assim quando sua cabeça estava cheia de problemas. Nada fluía até que resolvesse aquilo que a perturbava.
Por volta das quatro da manhã, sem conseguir mais suportar a angústia, ela pegou o celular e digitou uma mensagem para Ethan: "Precisamos nos resolver. Sinto muito... acho que quero a aliança de volta, haha." Fazer piadas nos momentos de tensão era seu jeito natural de lidar com as coisas. Talvez ele respondesse logo, e tudo se ajeitasse.
A ansiedade, que a consumia por dentro, também a impediria de descansar até que tudo fosse resolvido. Lia sabia que precisava cuidar melhor dela mesma, mas isso era um problema que ela ainda não sabia como resolver.

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Ruth, é você?
AcciónCalleb jamais superou a perda de Ruth, sua esposa, levada de forma trágica. Consumido pela culpa e perseguido por sombras do passado, ele vive sob constante vigilância, com a promessa de vingança ainda ecoando em sua mente. Mas, em uma biblioteca de...