Cap. 03: prazer, Cain!

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Já estava anoitecendo, e todas as crianças estavam preparadas para o jantar, mas algo me chamava no banheiro, como uma suave brisa de começo de outono, uma sensação acolhedora. Quando me dei conta, já estava em frente ao grande espelho do banheiro do orfanato. Vi meus cabelos castanhos bagunçados e meus olhos negros como carvão. Desviei minha atenção para uma gota de água que caía do chuveiro e se espalhava pelo chão. O banheiro do orfanato era enorme, com dez cabines de chuveiro e dez cabines com privadas. O cair da noite engolia o ambiente em um profundo sentimento de solidão. Mas um som chamou minha atenção:

- Cain - sussurrou uma voz.

Um arrepio percorreu minha alma, e as cicatrizes começaram a arder novamente. Novamente a dor era insuportável.

- Cain - repetiu a voz.

Caí de joelhos no chão de tanta dor e vi que das cicatrizes começava a escorrer um líquido denso e preto. O cheiro podre que emanava desse líquido me remetia à morte. Caído no chão, olhei para o espelho, mas não vi meus próprios olhos. Ela estava ali: a garota pálida, com cabelos longos e negros que cobriam seu rosto.

- Caim... Caim... Caim... - ela sussurrava incansavelmente.

O lodo preto que saía das minhas cicatrizes logo se transformou em uma grande poça no chão.

- Quem é você? - perguntei, assustado.

A criatura começou a ser engolida pelas sombras atrás dela no espelho. Tentei me aproximar rapidamente, na esperança de impedi-la de desaparecer, mas as sombras a engoliram por completo. Como num passe de mágica, duas mãos enormes me agarraram pelas pernas e me puxaram para dentro do lodo.

Tum... Tum... Tumtum... Acordei com o som de alguém batendo na porta e a voz do meu melhor amigo, Deniz:

- Ô, acorda, seu preguiçoso! Vamos nos atrasar! - disse ele, irritado.

Mas como é possível? Eu dormi por duas semanas? Deve haver alguma explicação lógica.

Levantei-me rapidamente e abri a porta. De cara, vi Deniz.

Deniz foi criado junto comigo. Ele é relativamente baixo para alguém de 16 anos, com cabelos pretos e olhos castanhos.

- E aí? Partiu aula? - disse ele, confiante.

- Como assim, aula? A escola não está fechada? - perguntei, confuso.

- E por que estaria fechada, cabeça de vento? - disse ele com uma expressão de dúvida.

- O assassinato... Júlia... Edy... - respondi com um nó de raiva na garganta.

- Não sei o que você andou fumando, mas essa daí é da forte! - falou ele, debochado.

Ele saiu correndo e rindo em direção à sala de refeições.

Como é possível? Tudo isso foi um sonho? Não pode ser... Eu vi, eu senti o cheiro de sangue, e minhas cicatrizes arderam muito. Olhei para o meu braço, e ele estava normal, feio e cheio de cicatrizes, como sempre foi.

Olhei para o meu colar ao lado do espelho do meu quarto e respirei fundo.

- Ufa, que bom que tudo isso foi só um sonho. Nunca que isso iria acontecer logo aqui, nessa cidade onde Judas perdeu as botas.

Eu estava destinado a acreditar que realmente tudo isso foi um sonho.

Peguei meu colar e o coloquei no pescoço.

A irmã Carmel sempre me diz que esse colar é a única coisa que me liga aos meus pais. Para outras pessoas, ele pode parecer apenas um brasão velho, mas para mim, é a minha relíquia e minha fonte de força. Nesse brasão está gravada a única palavra que tenho certeza de que me ligará novamente aos meus pais... "ABUTRES". Essa palavra é o meu guia.

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