Desde que me conheço por gente, a irmã Carmel me conta histórias sobre camponeses que viraram príncipes ou mendigos que se tornaram heróis. De antemão, já lhe digo que a minha história não se parece nem um pouco com esses contos."O paranormal não vem para nossa realidade de maneira fácil, ou pelo menos era isso que eu pensava."
Tum... Tum... Tumtum... Sou acordado por um grande barulho na porta, seguido pela voz do meu melhor amigo, Deniz:
- Ô, acorda, seu preguiçoso! Vamos nos atrasar!
Batidas fortes na porta.
De dentro do quarto, respondo:
- Vai procurar o que fazer, seu esquisito!
Ele retruca:
- Deixa a irmã Carmel saber que você vai se atrasar de novo.
Com passos pesados, ele se afasta da porta do meu quarto. Ainda sonolento, levanto-me e me encaro no pequeno espelho que tenho no quarto. Ao lado dele está meu bem mais precioso: um colar que me acompanha desde que cheguei a este orfanato.
O orfanato onde moro não é tão grande, mas também não é pequeno. Com a ajuda dos moradores de Santana de Garambéu, não passamos fome, mas também não temos o luxo de possuir muitos bens. Aqui, todos dividimos o que temos; somos uma grande família. Como tenho 17 anos, sou o mais velho e tenho o direito de ter um quarto só meu, algo de que me vanglorio às vezes.
Abro a porta do meu quarto, e meus ouvidos logo captam as conversas e os gritos das crianças na grande sala de refeições, aguardando o café da manhã. Minha mente desperta, e corro, pois realmente estou muito atrasado.
Tomo uma breve ducha e, novamente, me encaro no grande espelho do banheiro do orfanato. Observo-me da cabeça aos pés: meu cabelo castanho, bagunçado, me faz pensar na aparência dos meus pais. Logo esses pensamentos se dissipam quando meus olhos se fixam nas muitas cicatrizes profundas em meus braços. Desde que me conheço, elas estão lá, me lembrando o quanto sou fraco por não conseguir sequer recordar minha própria imagem de dez anos atrás. Volto à realidade e enrolo meus braços nas ataduras, dizendo a mim mesmo:
- Pelo menos, só eu vou ver essas aberrações hoje.
Olho para os meus braços com raiva.
Abro a porta do banheiro, já vestido, e corro até a sala de refeições. Lá, apenas uma pessoa me espera: uma mulher com trajes de freira e olhos verdes que parecem queimar a alma de quem ousar desafiá-la. Com sua voz doce, ela me chama:
- Paulo Cezar, venha aqui!
Meu corpo se move quase automaticamente em sua direção, como se já soubesse o que esperar. Com uma velocidade incrível, ela me dá um cascudo na cabeça.
- Aí, irmã, não precisava disso!
- Precisava, sim! Já é a terceira vez que você se atrasa para a escola esta semana. Olhe ao seu redor, todos já foram.
Mesmo com a cabeça latejando, ainda consigo ouvir Deniz rindo e dizendo que havia me avisado. Mas logo me distraio, quando a irmã Carmel segura minha orelha e me arrasta até a porta.
- Ô, calma! Eu não vou comer, não?
- Esse será o seu castigo, pestinha. Da próxima vez, acorde mais cedo.
Não leve a irmã Carmel a mal. À primeira vista, sei que ela parece uma mulher ranzinza e briguenta, mas, no fundo, ela é uma pessoa doce e de alma pura. Tenho muita sorte de ela ter me acolhido quando eu era bebê e por ter me criado.
Ela me leva até o grande portão de aço do orfanato e diz:
- Corra o mais rápido que puder. E ai de você se for mandado de volta para casa por chegar atrasado.
Com um arrepio na espinha e a orelha ardendo, corro o mais rápido que posso.
Santana de Garambéu é uma pequena cidade do interior de Minas Gerais. Aqui, o mais grave que já aconteceu foi a polícia ser chamada para resolver algumas brigas de bar, e nada além disso. Mas, ao chegar em frente à escola, tudo mudou em um instante. Quando eu vejo aquela cena algo me diz que esta pequena cidade não será mais a mesma a partir de hoje.
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Marcado pela morte
HorreurPaulo Cezar é um jovem com uma infância marcada por cicatrizes e memórias sombrias, vivendo em um orfanato pacato no interior de Minas Gerais. Quando a tranquilidade da pequena cidade é quebrada por uma presença inexplicável, ele descobre que o para...