Quando Celina acordou naquele fim de madrugada, encontrou um par de olhos amarelos fitando-a intensamente. Mal tinha erguido o corpo ainda meio sonolento da cama e a coruja já fazia um sinal afobado com a asa na direção da porta, como se estivesse apressando Celina para a missão de levá-la à benzedeira do vilarejo.
— Meu Deus, quanta impaciência — ela murmurou, bocejando. — Ainda tenho que tomar café...
— Toma rápido — disse a garota-coruja, recém-transformada em humana, dando um susto enorme em Celina.
— Ai, que ódio, garota! Não me assusta assim! — ela exclamou num sussurro e virou-se para encarar a menina, mas recuou o olhar por instinto ao vê-la sem roupas mais uma vez. — Por Deus, veste alguma coisa! — E se levantou rapidamente para abrir as portas do guarda-roupa. — Aqui, pode pegar o que você preferir, eu não me importo.
— Por que você reage desse jeito quando vê um corpo humano sem roupa?
— Sei lá, eu só... Só não tô acostumada, é isso.
— Humanos são tão estranhos.
— Somos mesmo. Agora se veste logo e me espera aqui, vou pegar alguma coisa pra você comer também.
— Aceito besouros, grilos e...
— Vai ser só um pedaço de pão! — Celina bufou, e saiu do quarto a passos rápidos ao som das risadinhas da garota-coruja.
Quando voltou, trazendo também um copo d'água, quase não reconheceu a menina que deixara ali minutos atrás.
— Ficou largo — ela disse, mostrando o vestido azul-clarinho sem mangas que escolhera para vestir.
— É claro que ficou, você é magra — Celina respondeu, colocando o café da garota na mesa, admirando o novo visual dela. — Mas ficou bonito. Vai ficar ainda mais com um cinto. Espera, acho que tenho um aqui nessa gaveta. Ah, aproveita e pega os chinelos ali no canto, você pode ficar resfriada se ficar descalça nesse chão frio.
Celina não demorou muito para encontrar o cinto que procurava, então foi até a menina-coruja, agora devidamente protegida da friagem nos pés, e enlaçou sua cintura com o acessório. Assim que encaixou a fivela, olhou para cima, bem nos olhos dela, e disse, com um sorriso orgulhoso:
— Pronto, agora tá lindo.
— Ficaria mais bonito em você — ela respondeu, olhando nos olhos pretos abaixo dos seus, com um sorriso afetuoso.
As bochechas de Celina ficaram instantaneamente quentes e coradas e, de repente, ela desviou o olhar e deu dois passos para trás.
— O que foi? Não gostou do elogio? — a garota-coruja perguntou, confusa. — Eu realmente acho que...
— Eu gostei, sim, obrigada! — Ela tentava disfarçar a vergonha. — De verdade, obrigada. É que eu não costumo receber elogios, por isso fiquei surpresa, só isso.
— Que absurdo. Você é tão bonita. Parece a princesinha do meu acampamento, os machos todos ficam querendo ter filhotes com ela.
— E... E você, já achou um macho pra... er... ter filhotes? — Celina queria desesperadamente mudar de assunto.
— Não gosto de machos, só de fêmeas.
— Oh... — Celina ficou surpresa e finalmente conseguiu voltar a olhar para ela. — Então, é... Você é lésbica?
— O que é isso?
— É uma mulher que só gosta de outras mulheres.
— Ah, então eu sou, sim. Mas não sei se "mulheres" inclui também corujas fêmeas, então...
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Sob as asas da coruja
FantasíaEm um mundo onde pessoas exterminam metamorfos por serem considerados "crias do diabo", estabelecer algum nível de comunicação entre as espécies parece impossível. Mas é isso que Celina acaba fazendo quando encontra uma coruja-buraqueira em apuros e...