Faz um tempo desde minha última entrada nesse diário, e muita coisa aconteceu, ruins em sua maioria, eu fui até o quarto 303, que era até então o próximo ponto de interesse, já que foi a chave dele que encontrei no 212, por incrível que pareça não foi complicado chegar lá, o monstro decidiu me deixar em paz por aquele momento, e não sentia tanto medo como antes, o que obviamente não me impediu de seguir com cautela, foi o mesmo processo da outra vez, mochila vazia pronta para carregar tudo que eu encontrar no caminho, canivete pra caso desse algo errado, e muita calma, é um sentimento, mas a minha teoria é que a coisa é atraída por meus sentimentos, eu não diria necessariamente medo, mas tudo que vem junto com ele, incertezas, desespero, ansiedade, pânico, analisando todos os nossos encontros nunca parecia que era algo externo que o atraía e sim eu, ou melhor, o meu 'eu' interno, ainda não sei se é exatamente isso, mas também bate com as descrições dos outros diários, mas eu estou me precipitando, quanto mais tempo aqui mais minhas ideias ficam bagunçadas na minha cabeça, pensamentos desconexos, amnésia, quase não consigo pensar em nada coerente e sim em palavras soltas com vários sentidos, mas aqui, enquanto escrevo, vou tentar manter seguir os ensinamentos da minha professora de redação, mesmo que a possibilidade que alguém leia isso seja praticamente zero, parando pra pensar era isso que os outros donos dos diários deveriam pensar também, e aqui estou eu prestes a falar deles porque deixaram registros de sua vida aqui para trás, e sim, eu encontrei mais, mais três na verdade, um em cada andar.
Primeiro foi no 303, o mesmo do anterior, zona total, cheiro horrível e basicamente uma cena de crime sem evidencias, esse padrão segue para todos os outros, nele eu encontrei um diário, que na verdade foi escrito em um celular que por sorte estava desbloqueado, mas essa era a única diferença, o conteúdo era basicamente o mesmo, preso nesse inferno, algum tipo de demônio o caçando e desespero infinito, e é o mesmo para os outros, no 303 eu encontrei a chave do 404, e dele fui pro ultimo, o 101, sim, eu não tenho mais chaves pra lugar nenhum, estou empacado, sem pistas que me levem a algo, só registros de vidas miseráveis similares a minha, e a história sempre termina da mesma forma, a ultima entrada era sempre no dia 30, nunca passavam disso, e também nunca abriam a porta, no dia 29 todos eles receberam uma carta por baixo da porta, nela só estava escrito que o tempo havia acabado e que 'aquilo' estava vindo, saber disso não me deixa muito calmo, se acontecer o mesmo comigo eu tenho só mais alguns dias, é algum tipo de jogo? Eu preciso resolver algum enigma pra sair daqui dentro do tempo limite? Eu preciso me matar? Ou talvez abrir a porta no ultimo dia e encarar aquilo? Enfrentar e matar o Monstro? E sim, eu encontrei ele mais uma vez, na verdade consegui ver ele, não queria ter que escrever sobre isso aqui, só a lembrança do que aconteceu me enche de medo e faz eu sentir que ele está vindo novamente em minha direção, me observando de algum canto que eu não consigo enxergar.
Depois do ultimo apartamento, eu me senti miserável mais do que nunca, eu tinha feito tudo aquilo para o que? Não cheguei a lugar algum, só descobri histórias miseráveis, e ali naquele apartamento me senti exposto, meus pelos começaram a se arrepiar, meu coração disparou, e eu corri para fora, só pra dar de cara com aquilo, eu conseguia ver ele e ele também me via, estávamos cara a cara, e a aparência do desgraçado era algo que eu nunca esperaria ver, era um gato, um gato preto do meu tamanho, os olhos eram enormes, com as pupilas dilatadas, me encarando com um rosto sem expressão, da mesma forma que um gato de rua te encara quando você tenta se aproximar dele, e pra fechar ele era bípede, estava parado somente com o apoio das pernas traseiras, eu não sabia o que fazer, não era algo que necessariamente dava medo, mas quanto mais eu encarava pior ele ficava, mais intimidador ficava, acho que ficamos uns 10 segundos só parados ali, até que finalmente minhas pernas ouviram meu cérebro e correram para as escadas, ele veio atrás de mim, correndo com as duas patas, era pesado, cada passo ecoava e parecia que um urso estava me perseguindo, sendo apenas abafado pelos miados dos meus próprios gatos acima, depois disso você normalmente pensaria que eu não confiaria mais nem nos meus próprios animais de estimação, mas eles ainda estão agindo como se estivesse tudo normal, e me sinto seguro com eles, de alguma forma O Gato não conseguiu me alcançar, acho que ele deixou eu escapar, aquilo definitivamente era mais rápido que eu, mas não reclamei, esse encontro por enquanto foi o nosso ultimo, e aqui estou, somente o que me resta é esperar até o dia 30, não sei o que vai acontecer até lá, mas cada dia que se passa o tempo fica mais rápido, minha ansiedade deve ser responsável por essa parte, é difícil aceitar o fato de que dentro de alguns dias eu provavelmente vou morrer, e não parece haver nada que eu possa fazer a respeito, antes eu sentia que carregava as esperanças e determinação daqueles que se foram antes de mim, senti que deveria conseguir por mim e por eles, mas agora não me lembro nem mesmo das outras pessoas, da minha família e amigos, não me lembro como era a minha vida antes, só flashes e cabeças sem rostos, corpos sem nome, acho que estou esquecendo de como eu sou, da minha própria identidade, acho que nunca falei meu nome aqui, e nem mesmo disso eu me lembro, não achei nenhum documento aqui que pudesse me lembrar disso, esse lugar quer realmente que eu me perca nele, que seja só o 'Eu', seja lá quem for, meus gatos, o Gato e apartamentos vazios.
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Apartamento
Mystery / ThrillerSubstantivo masculino Compartimento em um prédio, com várias peças, destinado à residência, em geral, de uma só família. Separação, afastamento, despedida. Ausência, retiro, solidão. Apartamento é sinônimo de: afastamento