Não sou assassina

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Vejo a luz da lâmina refletir a lâmpada, quero muito parar, mas ao mesmo tempo a dor vicia, fazia com que me cortasse até mesmo por diversão no passado. E posso acabar voltando a esse hábito ruim e idiota.

- Eliza, o que está fazendo? Você está bem? - escuto Thiago chamar da porta, mas não estou ligando para ele neste momento.

Sinto as lâminas invadirem minha carne com puro gosto, eu perdi. De novo eu perdi.
Algo quente e líquido jorra de minha perna com tamanha naturalidade. Sangue. Tudo o que eu queria, faço outro corte, dessa vez maior. E depois mais um, ainda maior que os outros três.

- Porque eu tô sentindo cheiro de sangue Eliza?

- Vá embora Thiago por favor! Eu sou um problema na sua vida e na vida de Diego. Sinto muito mas sou viciada em muitas coisas, inclusive em auto mutilação! Não posso ficar e deixar ele viver assistindo isso.

Duas mãos grandes e fortes seguram meus ombros em meio a escuridão. Ele entrou aqui? Porque sinto que ele quer me ajudar?

A lâmina é retirada de minhas mãos e as luzes do quarto são acesas. Como se fosse para ele me resgatar de me afogar em mim mesma de novo. Encaro Thiago os olhos cheios de lágrimas e o rosto molhado por elas. Seu rosto em uma careta de assustado, como se fosse a primeira vez que via alguém chorar.

O vejo se afastar lentamente de mim, pensei que tinha desistido, e logo veio em minha mente a ideia de pegar a lâmina no chão e continuar. Mas então ele volta, com gaze, soro de limpeza, papel higiênico e fita micropólio.

Ele limpa meu rosto com algumas folhas de papel higiênico. Pega a gaze e umedece com o soro fisiológico, tocando levemente as feridas abertas. Três cortes no total.

- Porque fez isso, Eliza?

- Já teve a sensação de estar morto mesmo respirando?

- Algumas vezes, mas nunca fiz exatamente isso.

- É tudo que sinto há quase quinze anos. Tinha parado por causa de Diego, mas depois que o perdi... voltou com força total. Não consigo mais parar desde então.

Foi quando ele notou minhas cicatrizes nas pernas. Pareceu ainda mais assustado. Que foi criatura? Nunca viu uma mulher ter marcas no corpo não?

Ele fez um curativo na minha perna, alertando com toda a calma do mundo:

- Olha Eliza, eu não queria dizer isso mas preciso dizer a verdade. Não sou irmão do Bruno. Só era vizinho dele quando crianças e ele me pediu para cuidar de você e do filho dele.

- Eu e Bruno... nunca transamos.

- Ah pronto! Fez filho com o que? Um vibrador?

- Não Thiago! É meio óbvio - não segurei uma pequena risada e vi seu sorriso aparecer também - Eu de fato fui estuprada, porém estava drogada e não me deram ouvidos. Contei ao Bruno o que aconteceu e ele me "acolheu". Então eu saí da cidade por uns cinco meses. Descobri a gravidez em uns dois meses e queria tirar. Mas meus pais não deixaram. Voltei depois desses cinco meses e Bruno me viu com barriga. Drogado ele gritou comigo, dizendo como eu era burra, estúpida e uma vadia por esconder uma gravidez dele, e depois disso ele foi embora. Nunca mais o vi.

Thiago inclinou me abraçando forte.

- Desculpa ter gritado com você antes. Bruno foi muito pau no cu com você. E eu nem sabia da história toda! - tudo parecia ir bem, até a última frase - entendo seus motivos para matá-lo, mais do que ninguém! Vou odiar ele junto com você.

O empurrei para trás com força.

- EU JÁ DISSE PEDRO, NÃO MATEI NINGUÉM! VOCÊ ENTENDE O PORTUGUÊS BÁSICO?

Ele me olhava de um jeito, como quem pede desculpas por falar merda.

- Eu não quis... - ele começou mas eu o cortei.

- Quis sim Thiago, você quis! Não sou assassina. Eu estava mais preocupada em me cortar e me drogar do que com o que Bruno faria ou algo do tipo!

- Vai querer almoçar?

- Não, mas obrigada pelos curativos - falei grossa. Depois dessa não vou olhar na cara dele o dia todo.

Saio do meu quarto, nem mesmo o notando. Vou até o quarto de Diego e o observo dormir, abraçado ao Tutu. Tão calmo, sereno. Acho que tudo isso serviu para algo afinal.

Ouço passos atrás de mim. Thiago. Mas que inferno! Ele não sabe o significado de "me dê um tempo"?

- Eliza - ele chamou em um sussurro - estou indo trabalhar, volto final da tarde.

- Tá.

- É tudo o que vai me responder?

- Se tiver sorte, sim.

- Porque?

Arrasto ele para fora do quarto pelo braço para que nossa discussão não acorde o garoto.

- Porque você me olha com medo porra! Mesmo que você tenha tipo dois metros de altura e seja forte pra caralho, você olha para mim com medo. Como se a qualquer instante eu pudesse pegar uma faca e te matar! Você me acusou disso na cara dura e ainda não acredita que não fiz nada!

- Porque nem mesmo é verdade! Pare de mentir pra mim Eliza!

- Eh não menti!

- Então qual era seu álibi?

- Eu tava me drogando, em uma calçada na frente da casa dos meus pais. Eu fiquei lá até duas da madrugada, enquanto Bruno morreu às duas. Satisfeito?

- Porque não disse a polícia?

- O sistema de uma cidade pequena do Brasil é falho Thiago.

- Eu sei disso, mas iam te ouvir como eu estou ouvindo agora! E eu faria isso por um bom tempo se precisasse.

- Ótimo. Você sabe o que significa "preciso de espaço"?

Ele fez que sim com a cabeça e antes que eu dissesse mais alguma coisa se virou e saiu. Pelo amor, mal nos conhecemos e ele já me acusa de mil e uma coisas diferentes.

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