Prólogo.

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Astrid Louis Ravenscar .

Dois anos atrás.

Contava em voz baixa, quase em um sussurro fatigado: um, dois, três. A repetição era um mantra que me acompanhava enquanto a dor nas minhas costas se tornava cada vez mais insuportável. O suor escorria pelo meu corpo cansado, um lembrete constante do árduo trabalho que me aguardava. À minha frente, o ganso — uma presa que fora caçada por mãos estranhas e que agora se tornava um presente dos céus, pois assim eu me livrava da necessidade de aventurar-me na floresta sombria.

Minhas mãos tremiam enquanto empunhava a faca com firmeza, o metal cintilante refletindo a luz tênue que entrava pela janela empoeirada. Com movimentos precisos e decididos, removia as asas do ganso abatido, sua carne fria e sem vida uma cruel lembrança do destino que aguardava aqueles que cruzavam o caminho de minha madrasta. Cada golpe da lâmina era como um eco da minha própria submissão, um ato de obediência a uma autoridade cruel.

Finalmente, após o laborioso esforço, o ganso estava preparado e disposto sobre a mesa rústica. Minha madrasta entrou na sala, seus passos pesados ressoando no chão de madeira. Um sorriso satisfeito brotou de seus lábios pintados de vermelho intenso — um contraste grotesco com a frieza do ambiente. Ela avaliou o prato com desdém disfarçado de satisfação, como se cada garfada fosse uma afirmação de seu poder sobre mim.

Apertei minhas mãos com firmeza, como se quisesse extrair delas toda a frustração que me consumia.

— Até que dá pro gasto. — A voz enjoativa de Meliry penetrava meus ouvidos, fazendo-me revirar os olhos involuntariamente. Seus cabelos ruivos, herança da mãe, estavam presos em elaborados cachos que caíam despretensiosamente sobre seus ombros, e seu rosto exibia uma expressão de satisfação que me causava náuseas. Ela levava à boca um ganso assado, cujos olhos ainda pareciam implorar por clemência.

Sentindo meu estômago revirar, recordei o desprezo que nutria por esse ato cruel de caçar e matar criaturas indefesas. Eu sempre optava pelo pão, mesmo que fosse apenas uma crosta dura, pois não conseguia suportar a ideia de me alimentar das vítimas de sua voracidade. A situação em nossa casa era deplorável; tanto minha madrasta, Gyana, quanto suas filhas – Meliry e Morgan – se recusavam a trabalhar. Eu era tratada como uma serva, uma sombra que apenas existia para satisfazer suas vontades.

Suspirei profundamente, permitindo que minha mão acariciasse o tecido desgastado do meu vestido branco. Era sempre assim; eu tinha que permanecer em pé, imóvel como um quadro empoeirado na parede de um castelo abandonado, aguardando pacientemente até que terminassem suas refeições opulentas. O tempo parecia se arrastar enquanto eu sonhava com um mundo onde eu poderia ser mais do que uma mera espectadora da crueldade alheia.

— Ainda há muito que aprimorar, Astrid! — A voz de Morgan ressoou como um eco irritante em meu ouvido, e eu revirei os olhos, exaurida. Embora meu impulso fosse replicar suas palavras com uma resposta mordaz, o nó em minha garganta se fez presente como um lembrete cruel da minha posição. Assim, limitei-me a oferecer-lhe um sorriso que não passava de uma máscara disfarçada.

— Minhas queridas filhas não são criaturas para que você se permita tal desdém, Astrid! — A voz da minha madrasta, Gyana, cortou o ar como uma lâmina afiada.

Comportem-se como tal!  — A última palavra reverberou em minha mente, mas engoli-a de volta, sufocando o desdém que fervia em meu peito.

Vacas!

— Irei melhorar, Gyana! — respondi com um tom que tentava ser submisso, mas os olhos me traiam ao se desviar para Lúcifer, o gato de pelagem branca que repousava arrogantemente no colo da minha madrasta. Ah, como eu o detestava! Sua presença era um lembrete constante da opressão que eu enfrentava diariamente.

Assim que elas concluíram suas refeições, dirigi-me à mesa, retirando os talheres com uma delicadeza que contrastava com a indignação que fervia em meu interior.

— Mamãe, vamos para a cidade! — A voz irritante de Morgan ressoou, revelando-se a mais insuportável entre as duas, superando até mesmo Meliry em sua incessante tagarelice.

— Venha, querida. — Gyana levantou-se de seu lugar à mesa, seus olhos avaliando-me de cima a baixo com uma frieza que me fazia sentir diminuta.

— Ao retornarmos, desejo que tudo esteja em ordem, Astrid! — Sua ordem soou como um golpe, e eu acenei em concordância, engolindo minha indignação. Assim que elas partiram, deixei-me deslizar até o chão, derrotada pelo fardo de suas expectativas.

Foi então que senti a suave presença de Smuf, um adorável ratinho marrom que se aninhou em meu colo. Um sorriso involuntário brotou em meu rosto ao contemplar sua pequena figura; ele era um raio de luz em meio à escuridão da minha realidade.

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THE LAST ONEOnde histórias criam vida. Descubra agora