A ultima carta de Hector

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Eu me sinto observado. As sombras têm olhos vidrados em mim, elas conhecem todos os meus passos, minhas manias. Essas... Coisas me observam desde aquele dia. Aquele maldito dia.

Estava voltando para casa, vindo de meu trabalho no Centro da Cidade. Era oito da noite e eu, com medo, ficava olhando para todos os lados tentando evitar algum assalto. Estranhamente as ruas estavam silenciosas. Havia poucos carros e nem mesmo engarrafamento costumeiro na frente da estação de trem. Eu era o único na calçada, que àquela hora devia estar lotada pelos camelôs.

Mas meu medo me impediu de notar isso, agora que as memórias voltam, parecia que eu estava em outro lugar, um universo paralelo em tons bizarros de cinza.

Um vento frio batia em meu rosto e gotas de chuva começaram a cair, então eu levantei o capuz do casaco e apressei meu passo até chegar a uma viela a qual eu atravessava para cortar caminho até o metrô. Maldita decisão.

Fiquei estatelado ao ver aquele ser. Era grotesco e vinha direto dos meus pesadelos mais sombrios. Sua pele era pálida e apodrecida, com vários rasgos secos de feridas. Um cabelo ralo preto que caia a cada movimento brusco de seus músculos, olhos de um predador sedento, vermelhos e bifurcados. O nariz era achatado como um focinho. Dentes que mais se pareciam agulhas manchadas de sangue. Braços longos que arrastavam no chão com adagas no lugar das unhas. Pés e pernas cumpridos em formato de "L". A sua frente, entre nós dois, uma poça vermelha com um corpo. O sangue do defunto corria até os bueiros.

Ao encontrar de nossos olhos eu me imaginei tendo a morte mais horrenda e dolorosa que conseguia imaginar no momento. Hoje sei que a loucura é a pior das mortes. Aquela coisa demoníaca me encarou e bufou tão forte que eu pude sentir o cheiro de seu hálito pútrido.

Eu tremia de medo, meu coração disparava tão forte que parecia saltar da boca e minhas pernas não respondiam a qualquer estímulo. Pude me ver caído aos seus pés igual aquele corpo.

Fechei os olhos esperando o fim, mas senti algo me puxar ao chão. Era o peso do meu próprio corpo sentindo a adrenalina passar. Não sei quanto tempo fiquei naquele estado de dormência, entretanto quando abri meus olhos, a criatura havia sumido, nem o corpo mutilado. Contudo a mancha escura de sangue permaneceu.

Desde então eu não consigo dormir, sair de casa. Sair do meu próprio quarto é como assinar meu óbito. A comida está acabando, mas me recuso a ir ao mercado. Já tentei pedir ajuda a alguns colegas, mas eles me chamam de louco, acham que foi apenas estresse. Eu sei muito bem que aquilo foi real, não um delírio, não pode ter sido.

Lucia me desculpe. Mesmo, me desculpe. Espero que depois desse mês inteiro sem dar notícias, você tenha se esquecido de mim. A última coisa que desejo é que me veja nesse estado deplorável. Também não quero que leia esse meu patético testamento, mas não poderia ficar sem dizer adeus, pois hoje, no momento em que escrevo essas palavras, a criatura me encara pelo espelho. 

O Outro lado das BrumasOnde histórias criam vida. Descubra agora