Na Noite Do Banheiro.

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Na Noite do Banheiro.

'Numa vasta duna espelhada, cujas areias peroladas retribuíam as luzes estelares da noite nascente, onde seu topo estava coroado pelo carmesim remanescente do pôr do sol, semelhante com o topo de Amon Rûdh, só que nessas areias não se tinha nenhum anão miúdo com intenções duvidosas morando nelas. Certamente essa era uma bela visão para todos se admirarem, menos Deimos, que apenas fixava a sua visão nas labaredas crepitantes da fogueira em sua frente, sentindo o odor poderoso da carne de escorpião assando e queimando, enquanto uma linha prateada escorria de seu olho esquerdo, descia pela bochecha e chegava na pelagem curta, se aglutinando numa única gota cristalina daquela barba arruivada, gorda e salgada. E então, quando o graveto que segurava o escorpião-das-dunas se rompeu e caiu dentro das chamas, a gota solitária caiu na areia, rapidamente desaparecendo. Quando isso aconteceu, Deimos sorriu, de uma forma tão dolorosa e melancólica, enquanto pressionava o gélido cano do seu revólver contra a própria têmpora direita. Ele parou de sorrir e fechou os olhos num tom profundo de roxo, revelando as muitas olheiras, relaxou o corpo, e enfim, puxou o gatilho.

O barulho de um disparo ecoou no ar, e junto dele o sol terminou de afundar no filamento do horizonte que dava para o ocidente, e com ele veio uma suave brisa fria, dando início a mais uma nova e calma noite naquele deserto de vidro. E, bem no topo daquela duna mutável, uma fogueira que tostava carne de escorpião crepitou e apagou-se, pois um corpo caiu por cima dela.'

Era esse o trecho de 'A Prisão Do Tempo' que Steven lia e relia trancado em seu banheiro. Isso ainda com a cintura e um pouco acima do umbigo estando já submersos na água morna e relaxante vinda dá torneira da banheira de mármore. O laptop de Stephen estava posto sobre a borda da banheira, como quê equilibrado entre a queda na cerâmica do chão enxarcado do banheiro, ou fundar na água e alcançar o colo de Steven. Em ambos os casos, o Lewis não iria se importar muito com o destino final daquele objeto. Ele só queria ler e reler aquele pequeno e significante parágrafo para si mesmo, enquanto November Rain tocava baixinho ao longe, vindo do celular do jovem largado em cima do balcão da pia, e a letra quase não entrava mais em seus ouvidos. Era como se a única coisa que importasse naquele momento, fosse uma pequena e simples decisão no centro de sua existência.

Nada além de uma pequena e simples decisão.

Será que doeria muito? Tipo, o quão dolorido seria ter os pulmões invadidos por água morna? Será que morrer afogado, de uma forma tão patética e ridícula como aquela, faria seus pecados serem amenizados de algum modo? Será que depois de tantos erros irrevogáveis, uma morte como aquela quitaria as suas dívidas morais? Ou na verdade só deixaria o julgamento dos vivos ainda mais insatisfeitos consigo? De que adianta declará-lo um criminoso culpado, se ele mesmo não pagaria por isso? Mas será que ele já não sofreu o suficiente?

Se sim, então poder acabar com a sua própria vida seria um perdão, certo?

Mas se não... então ele estaria sendo um maldito egoísta, por não estar dando aos vivos o direito de julgá-lo, e de o encarcerar como se faz a uma besta? Mais talvez a maior punição para tais crimes não seriam a morte? Depois dela só existe a inexistência e o nada, a morte leva para o extremo e hediondo vazio de todas as coisas. Nada além de um vórtice de esquecimento e decomposição de corpos moribundos. Um plano insólito e mórbido de esquecimento incerto, para onde tudo diverge de maneira uniforme, e desaparece dos planos mais elevados do conhecimento limitado dos homens.

Mas seria da morte todo esse mal agouro? E se existir alguma coisa para além dessa vida? Uma coisa desconhecida, quer seja boa ou quer seja ruim. Dessas matérias Steven não sabia, ou não queria saber, principalmente naquele momento final, a decisão da sua existência terrena.

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