Prólogo

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Os olhos de Kayin abriram de maneira preguiçosa. Piscando muitas vezes, para se acostumarem à luz do sol, que entrava no pequeno cômodo em feixes desiguais. Grãos de poeira dançavam no ar, movidos pela respiração lenta e ritmada do garoto. O ambiente começou a fazer sentido aos poucos.

Seu quarto parecia o mesmo. Os mesmos livros nas prateleiras, a mesma mesa carregada de papéis e cadernos com padrões intrincados. A mesma fotografia de seus pais na moldura decorada com conchas e com uma pintura mal feita. Mas, uma grossa camada de poeira parecia tomar conta de tudo. Com mais atenção, Kayin começou a notar outras diferenças no cômodo tão familiar. A janela do quarto estava quebrada, deixando que uma brisa fria entrasse no quarto. Folhas secas estavam em todos os lugares, bem como alguns pássaros que agora encaravam o garoto com curiosidade.

Kayin se levantou abruptamente, movendo consigo uma nuvem de pó e folhas quebradiças. Pela primeira vez, respirou fundo e sentiu seus pulmões expandindo com a respiração, se enchendo de ar e de poeira. Seu peito doeu, como se tivesse acabado de subir diversos lances de escada. Pouco a pouco, ele começou a tomar consciência de seu corpo. Sua boca estava seca, como se não tivesse tomado uma gota de água sequer já há muitos dias. Seu corpo doía em quase todos os lugares. Sua barriga rosnou como um monstro enjaulado, o que fez com que elevasse sua mão até ela.

"Ti... Tia?" Sua voz soava rouca e dolorida, as pontadas em sua garganta pareciam agulhas perfurando a carne. "Tia Marta?"

Kay tinha certeza que ninguém fora do quarto havia escutado, já que mesmo com toda sua força, a sua tentativa de gritar por alguém familiar não passava de um sussurro. Com esforço considerável, ele se levantou, usando as mãos para tirar o corpo da cama. Seus músculos queimaram em protesto.

Ao se colocar de pé, suas pernas cederam, como se o rapaz já não soubesse como sustentar seu próprio peso. Seu corpo pequeno mal gerou barulho quando se chocou contra as frias tábuas de madeira.

Ali, com seu corpo pressionado contra o chão, Kay tomou consciência do medo que corria como metal resfriado em suas veias, bombeado por seu coração palpitante. Todos os pelos em seu corpo estavam arrepiados, eletrizados pelo ambiente. O garoto nunca havia se sentido tão inseguro em um ambiente tão familiar antes.

Naquele momento, se curvar e morrer parecia a única opção possível. Mas o medo correndo foi um aliado indispensável. Agindo contra os protestos de seus músculos cansados, Kay se levantou, apoiando-se na cama. Com toda a sua força de vontade, ele empurrou para longe a tontura e o enjôo que o abateram.

Usando as paredes como suporte, ele caminhou pelo corredor a passos cautelosos. Seus pés descalços deslizavam pelo chão de taco de maneira silenciosa. Algo em sua mente lhe dizia para fazer o mínimo de barulho possível. O silêncio era pesado, como um cobertor de peles. Tão diferente da casa sempre preenchida pelos sons das notas de piano que sua Tia Marta produzia.

A porta ao fim do corredor estava entreaberta, deixando que a luz do sol entrasse pela pequena fresta, que aumentava e diminuía, como resultado de uma brisa silenciosa que movia tudo na casa. Até mesmo as fotografias emolduradas nas paredes pareciam se mover lentamente, quase como se todo o corredor respirasse. Kay, por um instante se sentiu mergulhando cada vez mais fundo na garganta de uma fera desconhecida.

"Tia Marta?" Ele perguntou, abrindo a porta com cuidado. O ranger das dobradiças encheu o ambiente, quebrando o silêncio. "O que aconteceu...?"

Nada. A cama estava desfeita, coberta por uma grossa camada de poeira. As janelas estavam abertas e o chão estava podre em algumas partes, provavelmente degradadas pela ação do mundo externo. Como em seu próprio quarto, o ambiente que deveria ser familiar carregava um incômodo em todos os pequenos detalhes errados. O pó, as cortinas encardidas... O óculos com lantejoulas na cabeceira da cama.

Tia Marta era cega como uma toupeira. Não podia dirigir, não podia nem sequer andar sem seu par de óculos, que ela apelidara de seus olhos. Um novo tipo de desespero tomou conta de Kay: sua única família poderia estar em perigo.

Agora com passos mais decididos, Kay deixou o quarto de Marta gritando por seu nome da melhor maneira possível. Seu corpo ainda pesava, suas pernas ameaçavam ceder a qualquer momento. Todas as vezes que puxava o ar para seus pulmões cansados, sentia como se fogo ardesse em seu peito.

E, mesmo dando tudo de si, ainda caminhava como um animal ferido. Apoiando-se desesperadamente nas paredes, derrubando retratos já tão empoeirados que mal era possível reconhecer as pessoas por trás da camada de vidro.

Ao alcançar a porta, depois do que parecia uma eternidade, Kay ouviu passadas pesadas caminhando por sua calçada. Talvez tia Marta, ele pensou, abrindo a porta apenas para encontrar um desconhecido.

Com medo, o garoto se afastou da porta sem tirar os olhos da figura que se aproximava. Seu corpo estava quase todo coberto, nem mesmo os olhos estavam visíveis por detrás de óculos escuros. Quem quer que fosse, era muito mais alto que Kay, facilmente por uma cabeça ou duas e tinha ombros largos e imponentes.

"Ti... Tia Marta!" Ele gritou, agora alto o suficiente para que o som ecoasse pela casa silenciosa. "Quem...?"

Antes que pudesse concluir o pensamento, o cansaço finalmente o alcançou. Suas pernas se tornaram molengas e desobedientes. Os cantos de sua visão começaram a escurecer, fazendo com que a figura que ainda se aproximava parecesse com uma sombra. Sua mente berrava, correndo de um lado ao outro buscando por soluções. Mas o garoto caiu no chão antes que pudesse de fato gritar.

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