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Desde que o Kabrinha começou a aparecer mais, eu fui percebendo como ele tinha um jeito de invadir sem pedir, mas sem pesar. Era diferente de tudo o que eu tava acostumada. Com ele, as coisas fluíam de um jeito estranho e natural, como se não precisasse de explicação.

Depois daquela noite em casa, ele se tornou quase rotina. Passava por aqui sem avisar, sempre com um pretexto. E eu, que sempre fui fechada, percebi que, por alguma razão, abria espaço pra ele. Não era como se ele forçasse. Era só o jeito dele de estar ali, simples e constante.

Então, numa quinta-feira à noite, ele surgiu com mais uma das ideias dele.

— Ô, Bia, bora sair um pouco dessa loucura aqui. Amanhã a gente vai pra Igaratá. Só eu, você e a lancha do meu primo.

Eu pisquei, confusa, mas curiosa.

— Do nada assim? Você acha que é como? Eu tenho coisa pra fazer, sabia?

Ele deu aquele sorriso torto, como quem já sabia que eu ia ceder.

— Acha mesmo que eu não pensei nisso? Relaxa, é só um bate-volta. Cê merece.

E foi assim que, na sexta de manhã, a gente pegou a estrada. O Kabrinha no volante, com o som ligado e aquele jeito dele de cantar qualquer música como se fosse dono dela. Eu fui no banco do passageiro, tentando ignorar o quanto ele tava animado.

— Cê sempre foi assim, tão exagerado? — perguntei, rindo, enquanto ele fazia um improviso tosco com a letra da música.

— Só quando eu sei que vale a pena, tá ligado? — Ele respondeu, piscando pra mim antes de voltar os olhos pra estrada.

A chegada em Igaratá foi quase mágica. A paisagem parecia tirada de um cartão-postal: o sol refletindo na água, o silêncio quebrado só pelo som das árvores e das poucas pessoas na marina. Ele estacionou o carro e me ajudou a descer, com aquele toque casual que fazia parecer que tudo era simples.

Na lancha, só nós dois, o barulho do motor sendo trocado pelo som da água quando ele desligou o motor no meio do lago.

— Pronto, agora cê pode respirar — ele disse, jogando uma cerveja pra mim e se sentando no banco ao lado.

— Você sempre manda eu respirar, né? — retruquei, abrindo a lata e dando um gole.

— Porque cê não faz isso. Nunca vi alguém tão acostumada a tá no modo "sobrevivência" o tempo todo.

Aquelas palavras sempre me pegavam desprevenida. Ele tinha uma maneira de ler as pessoas que eu nunca vi em mais ninguém. Era irritante, mas... ele não tava errado.

— Talvez seja o que eu sei fazer melhor — confessei, olhando pras montanhas ao longe.

Ele ficou quieto por um momento, só me observando.

— Tá na hora de aprender outra coisa então. — Ele jogou o corpo pra trás, apoiando os braços no banco, e deu aquele sorriso leve que me desmontava.

Depois de um tempo, ele ligou o som. Uma playlist tranquila, com músicas que combinavam com o lugar. A gente ficou ali, conversando sobre nada e tudo ao mesmo tempo. Ele contou umas histórias da infância, das viagens com os amigos, e eu, sem perceber, fui me abrindo também. Falei sobre coisas que eu quase nunca falo — meus medos, as vezes que achei que ia desmoronar, e como era difícil confiar em alguém.

— E por que cê confia em mim? — Ele perguntou, direto, mas sem pressão.

Eu parei, surpresa. Nem eu sabia a resposta certa.

— Não sei. Talvez porque você não força. Só... tá aqui.

Ele riu, um som baixo e sincero.

— Tá vendo? Eu sou bom nisso.

Revirei os olhos, mas ri junto.

No final da tarde, com o sol se pondo e o céu pintado de laranja e rosa, ele olhou pra mim de novo, daquele jeito que só ele fazia.

— Sabe o que é mais da hora? — ele começou, a voz baixa e tranquila.

— O quê?

— Que, mesmo com todas essas barreiras aí, cê tá tentando. E isso já vale muito.

Eu não sabia o que responder. Só fiquei olhando pra ele, sentindo aquela verdade que ele trazia, sem tentar nada, sem forçar nada.

No caminho de volta, enquanto ele dirigia de novo, o silêncio no carro não era pesado. Pelo contrário. Era um daqueles silêncios que dizem mais do que qualquer palavra. E, pela primeira vez em muito tempo, eu senti que tava respirando de verdade.

Inefável - Menor Kabrinha. Onde histórias criam vida. Descubra agora